Por daniela.lima
Presença dos soldados garantiu ações sociais que não tinham chegado ao complexoDivulgação

Rio - No dia 5, a Força de Pacificação do Complexo da Maré completa um ano de ocupação. A data antecede os dois últimos meses em que tropas do Exército, Marinha e Aeronáutica ficarão por lá. Em junho, elas serão substituídas por mais de 1,4 mil policiais militares. A iminente saída dos militares — são três mil por dia — é esperada num clima misto de alívio, ansiedade e apreensão. 

A presença dos soldados, segundo analistas, garantiu ações sociais jamais vistas na comunidade. Por outro lado, não conseguiu inibir a sangrenta disputa por bocas de fumo entre traficantes de duas facções criminosas: o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro.

No Complexo da Maré, o maior conglomerado de favelas do Rio, com 16 comunidades, moram mais de 130 mil pessoas. A maioria delas vive a expectativa da mudança. “Se os traficantes ignoraram os militares, com seus tanques e blindados de combate gigantes e armados com fuzis e pistolas (seriam mais de cinco mil armas), vão respeitar a PM?”, questiona o comerciante X., de 45 anos, que diz estar “cansado de presenciar” tiroteios entre quadrilhas, “mesmo com militares observando tudo a distância”.

“Vamos sentir falta. Ruas e escolas foram recuperadas, bandidos importantes foram presos e horários e altura do som dos bailes funk e de pagode, disciplinados”, pondera o motorista Y., 53.

Traumatizados e com medo de que os confrontos se intensifiquem, muitos moradores estão deixando o complexo. É o caso de Maria do Socorro Viana de Araújo, 40, que acusa soldados do Exército de terem executado seu filho, Felipe de Araújo Vieira, 23, com um tiro de pistola à queima-roupa no peito, no dia 20 de janeiro, na Vila dos Pinheiros.

Felipe é uma das 30 pessoas — incluindo um cabo do Exército — que morreram em 11 meses na Maré em confrontos ou em circunstâncias ainda não esclarecidas. Mais de cem ficaram feridas (51 militares).
Maria do Socorro garante que uma testemunha viu Felipe, que nunca teve envolvimento com o crime, sendo assassinado durante abordagem dos militares. “Ela prestou depoimento na Delegacia de Homicídios, mas ninguém foi preso. Os soldados, que não socorreram meu filho, passaram a me ameaçar na porta da minha casa. Estou indo embora daqui, onde nasci, para não morrer como meu filho”, justifica.

Embora, por questões estratégicas, o Comando Militar do Leste (CML) evite comentar o assunto, as tropas deixarão para a PM um mapeamento de acessos difíceis em todo o território, de dez quilômetros quadrados. Novos caminhos foram abertos e outros ficaram livres de barricadas do tráfico, feitas de barras de ferro, concreto e carcaças de carros.

A presença das Forças Armadas terá custado, no fim das contas, R$ 432 milhões ao governo federal, o equivalente a R$ 1,2 milhão por dia. Agora, o desafio será do governo estadual.  


Críticos dizem que dinheiro foi mal usado

Educadores e representantes de entidades de Direitos Humanos, criticam a ocupação da Força de Pacificação. “Não mudou absolutamente nada. É impossível querer mudanças com atitudes de guerra. Os tiroteios na porta da minha escola continuam quase diariamente. Na semana passada, por exemplo, por três dias, os alunos tiveram que ficar abaixadas nas salas de aula com medo de balas perdidas”, argumenta Yvonne Bezerra, do Projeto Uerê, ONG que atende 470 crianças com traumas de violência na Baixa do Sapateiro.

“Os R$ 432 milhões poderiam ter sido investidos em escolas, creches, quadras de esportes e postos de saúde. Intervenções armadas só geram mais violência”, diz o advogado do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, João Tancredo.

Para Edson Diniz, diretor da ONG Redes da Maré, há até boa intenção e esforço dos militares para uma aproximação com a comunidade. “Mas as tropas, preparadas para proteger fronteiras, são vítimas também do quadro atual. Estão como peixes fora d’água”.

CML destaca ‘boas ações’

O delegado da 21ª DP (Bonsucesso), Delmir Gouveia, elogia as tropas na Maré. “Prenderam 570 suspeitos de crimes, entre eles, líderes importantes do tráfico, como Fabiano de Jesus, o Zangado, do TCP, irmão de Marcelo das Dores, o Menor P. Com a ajuda dos militares, também prendemos outros, como Eduardo da Silva, o Avião, maior fornecedor de cocaína do Comando Vermelho, e identificamos dezenas de bandidos”, comenta.

Em nota, o Exército lamentou a morte do cabo Michel Mikami, de 21 anos, por traficantes, em novembro, e diz ter instaurado 17 inquéritos para apurar supostas condutas irregulares e abusos de soldados.

“Além de coibir a violência, o trabalho dos militares e dos órgãos envolvidos visa também criar condições para a entrada do poder público”, diz o texto, citando algumas ações realizadas, entre elas a Justiça Itinerante, a recuperação de instalações escolares, a pintura da Vila Olímpica da Maré e a liberação de vias para a mobilidade urbana, além de encontros periódicos com líderes comunitárias e ONGs. 

Tiros e perna amputada

O estoquista Vitor Santiago Borges, 29, é outro que vai embora da Maré. No dia 12 de fevereiro, o carro em que estava, com quatro amigos, foi fuzilado por soldados do Exército na Favela Salsa e Merengue. O motorista não ouviu a ordem de parar numa blitz.

Baleado com tiros de fuzil 762 no tórax e na perna esquerda, Vitor, ainda hospitalizado, teve o membro amputado. Em vídeo no Facebook, ele garante que não voltará para a comunidade. “Está muito violenta”, justifica.

A vendedora M., 43, mudou-se do Parque União com o marido e três filhos ano passado. Paga agora R$ 1,9 mil de aluguel num bairro da Zona Norte. “Alugamos nosso imóvel na Maré, onde meu irmão (de 37 anos) já foi vítima de bala perdida no ombro, por R$ 800. Ele também foi embora. O complexo, por falta de investimentos sociais e da própria falta de educação de boa parte da população, é uma fábrica de bandidos”, opina.

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