Rio - Na capital fluminense, onde traficantes e milicianos há décadas impõem a lei do terror nas comunidades carentes, bandidos passaram a demonstrar ainda mais ousadia. O DIA constatou que obras públicas para a melhoria do cotidiano dos moradores estão emperradas ou em ritmo lento por conta da influência de criminosos. Nas regiões conflagradas pela violência, até as ações governamentais têm que passar pelo crivo das quadrilhas.
Exemplos de como grupos fora da lei decidem o que pode ou não ser feito não faltam. É o caso das estações do BRT Transoeste de Cesarão II e Vila Paciência, em Santa Cruz, que estão inoperantes desde janeiro. O próprio consórcio responsável pelo sistema informa que o fechamento ocorreu “em função de atos de vandalismo”. As estações foram incendiadas e depredadas por ordem de bandos armados, após operações policiais na Favela do Rola. Desde então, o governo municipal tenta reformar os pontos de ônibus articulados, sem sucesso.
“Funcionários estiveram aqui com equipamentos e tintas, mas a bandidagem, por meio de motoqueiros, mandou recado para irem embora. À noite transformam as estações em bocas de fumo, onde o crack é a principal oferta”, conta X., de 45 anos, que mora nas imediações da Cesarão II.
Indignados, moradores ressaltam que o terminal, na Av. Cesário de Melo, fica em frente a um Posto de Policiamento Comunitário (PPC) da PM, que mantém um ‘caveirão’ (blindado) da corporação parado ao lado da unidade, sem nenhum policial para operá-lo. No meio da tarde de quarta-feira, os dois PMs de plantão saíram para fazer rondas e a unidade ficou vazia.
No Complexo da Maré, as obras da ciclovia de 22 quilômetros — iniciadas mês passado e que prometem interligar, em um ano, as comunidades aos BRTs Transbrasil e Transcarioca e à SuperVia — estão em marcha lenta. O que se vê na Favela Nova Holanda, onde as obras começaram, são somente algumas placas e poucos desenhos de bicicletas no asfalto, mas nenhuma mudança.
“Os traficantes não querem a ciclovia, pois acham que o projeto vai influir negativamente na venda de drogas posteriormente. O trajeto já foi até mudado em alguns locais”, comenta um líder comunitário.
Na Maré, clínica muda de local por causa do tráfico
Na Maré, outra polêmica. No dia 8, entusiasmado, o prefeito Eduardo Paes lançou as obras de uma Clínica da Família, na Vila dos Pinheiros, e anunciou a construção de outra na mesma região para atender mais de 30 mil moradores. O local escolhido, porém, foi alterado depois, e a nova unidade de saúde será erguida no terreno de um Ciep. Traficantes “não teriam aprovado” o local anterior, conforme comentários em redes sociais, porque implicaria no sumiço de uma área de lazer, onde, de forma dissimulada, existem pontos para a venda de drogas.
As ações governamentais também esbarram na violência até mesmo onde o policiamento ostensivo tem se mostrado mais presente. A prefeitura se ofereceu para reformar duas UPPs no Complexo da Penha — do Parque Proletário e Chatuba —, depredadas e fuziladas por bandidos várias vezes. Mas, até agora, a obra não foi adiante por supostas ameaças de bandidos. O motivo seria o mesmo que impediu a reforma de outras seis bases de UPPs e a construção de mais duas, orçadas em R$ 7,3 milhões, que não saíram do papel em outubro, como era previsto.
Em Coelho Neto, na Zona Norte, serviços básicos, como o recolhimento de lixo, são prejudicados desde o início do ano. Milicianos seriam os responsáveis pela instalação de barras de ferro em diversas vias onde os ataques a motoristas são constantes, como as transversais das ruas Theremim e Ribeyrolles, perto da Igreja São Jerônimo. O padre local, Flávio de Oliveira, foi o único a quebrar o silêncio recentemente: “Isso é uma aberração”.
‘Estado tem que assumir seu papel’
Para especialistas, não há um paralelo de controle territorial urbano por grupos armados, como acontece no Rio, em outros pontos do país. “É inadimissível que o Estado não afirme sua soberania e autoridade em lugares onde ações do governo são impedidas. O Estado tem que assumir seu papel com metas e estratégias, e não só com repressão”, diz o sociólogo João Trajano, do Laboratório de Análise da Violência da UERJ.
Máximo Masson, mestre em Sociologia da UFRJ, lembra de situações parecidas na Colômbia e no México, e que, no Rio, o funcionamento de escolas e postos de saúde, em várias regiões, “só ocorre mediante negociações (de representantes governamentais) com o crime organizado, nunca admitidas publicamente.” “Ao custo do silêncio dos moradores, num verdadeiro estado de exceção”, ressalta o estudioso, defendendo mais diálogo entre o poder público e a população.
Doutor em Planejamento Urbano pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento da UFRJ, Mauro Osório defende a reformulação das UPPs: “São importantes. A situação de lanterna econômica do Rio começou a se reverter graças a elas”, afirma.
Órgãos negam influências
Em nota, a assessoria de Eduardo Paes admitiu que “o Consórcio BRT relata dificuldades em retomar a operação nas estações Cesarão II e Vila Paciência, por questões de segurança” e que “equipamentos essenciais à operação, como câmeras e monitores, foram furtados”.
Quanto à escolha de outra área para a Clínica da Família na Maré, a prefeitura alegou que a obra “teve seu local alterado para atender melhor a comunidade, próximo a escolas de tempo integral”. Em relação à ciclovia, a nota diz apenas que “a obra segue o traçado original.”
Sobre as reformas de sedes das UPPs, a Prefeitura informou que “a do Parque Proletário sofreu atraso em virtude da não liberação do espaço pela Secretaria de Segurança.” A secretaria não comentou. A Coordenadoria de Polícia Pacificadora garantiu não ter conhecimento de denúncia de que criminosos estariam impedindo o andamento de obras em suas áreas.
Já o governo municipal adiantou que as barreiras de ferro em Coelho Neto, que, em nota, o comando do 9º BPM (Rocha Miranda), diz “não considerar barricadas” são ilegais e que serão retiradas com apoio da PM. O comandante do 27º BPM (Santa Cruz), Luiz Lopes, assegurou que o blindado “foi posicionado estrategicamente na Avenida Cesário de Melo para agilizar operações”.