Por tabata.uchoa

Rio - O dia sempre começa primeiro para quem mora em Japeri, cidade mais conhecida por ser a última parada dos trens que partem da Central do Brasil. Mas é bem antes de o sol nascer que os moradores de seis bairros do município iniciam a jornada de aventuras e dificuldades para sobreviver nos lugares situados na parte mais baixa das estatísticas de qualidade de vida. Falta quase tudo.

Clique na imagem para ver o infográfico completoAgência O Dia


Os ônibus escassos e com intervalos de três horas afugentam comerciantes, professores e médicos. As ruas esburacadas encarecem produtos e serviços. E o mais inacreditável: a falta de cabeamento de telefonia isola a população da internet. Nada de comunicação, pesquisa ou os agitos das redes sociais. O problema ainda desconecta os alunos das escolas da região dos avanços tecnológicos e das pesquisas pedagógicas. Tudo bem perto da capital, a apenas 70 quilômetros da Rio de Janeiro Olímpica.

Um passeio pelos bairros colocados nos últimos lugares do ranking do IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios) do Rio revela um mundo estacionado no século XIX. Não sem a coincidência da data da última grande obra pública vista pelos moradores: a rede de coleta e abastecimento de água. Pasmem: foi construída pelo Imperador Dom Pedro II, em pleno Brasil-Império.

Criada para captar as águas dos mananciais da Serra de Tinguá e levá-las até o Rio, a rede beneficia até hoje os bairros que estão no caminho da robusta tubulação de água.

Do mesmo período, outra grande construção só resta na memória dos moradores mais antigos ou nos resquícios dos trilhos de aço que ainda indicam o caminho por onde passavam os trens do ramal auxiliar — responsável pela ligação de dezenas de bairros da Baixada com o subúrbio e à Estação da Leopoldina — desativado na década de 70.

A poeira nos dias secos e a lama nos chuvosos são desesperadoras para os moradores. O que fica próximo às ruas onde passam veículos ficam totalmente cobertos de póJoão Laet / Agência O Dia

Dois séculos depois, só resta esperança na inspiradora homenagem divina no batismo dos bairros (Antônio, Amélia, Sebastião e Sofia) — e do homem que colonizou a região (Alzejur). Só Deus mesmo para convencer uma operadora de telefonia a levar o cabo até Santo Antônio — o último bairro na lista do IDHM, com 0,59 ponto. Os moradores tentaram, mas a única possibilidade seria a comunidade assumir o custo de R$ 24 mil pela compra da rede aérea. Uma solução inviável.

“Aqui se vive com menos de um salário mínimo, como podemos pagar?”, reclama Roselane das Neves Ribeiro, uma das idealizadoras do pedido e funcionária do único posto de saúde que atende aos moradores — localizado já do lado de Nova Iguaçu. “Quem fica doente recorre a um amigo. Não há como chamar ninguém. Nada de Samu. Nem aqui (no posto) temos telefone.”

O celular é outro sonho ainda distante. Cercada pela interferência da Serra de Tinguá, a única antena fica a seis quilômetros, já no distrito de Engenheiro Pedreira, e nunca o sinal chega até o bairro de Santo Antônio. Vale para qualquer operadora. Roselane Ribeiro conseguiu improvisar para manter contato com os filhos enquanto está no trabalho: valeu-se dos antigos rádios transmissores, que em curtas distâncias substituem os telefones. “A gente vai se adaptando, mas não resolve o problema”, protesta.

A bicicleta é um dos meios de transporte mais usados para levar as crianças à escola ou trabalhadores à estação de trem. É que os ônibus circulam com intervalos de 3hJoão Laet / Agência O Dia

Nas salas de aula da Escola Santo Antônio, os 120 alunos vivem o outro capítulo (bizarro) da falta de telefonia no bairro. Depois de passar por uma pequena reforma na pintura e na rede elétrica, o colégio recebeu há dois anos o seu maior presente: um laboratório de informática com sete computadores modernos. Tudo novinho. Para quem nunca viu e nem sabe o que são as redes sociais, era a promessa de descobrir o mundo virtual.

Mas os equipamentos servem apenas como complementos das velhas máquinas de escrever, com a chance de as crianças conhecerem alguns programas mais básicos.

“Uma empresa prometeu colocar uma antena, mas ficou apenas no projeto. Isto ajudaria muito na pesquisa dos trabalhos e na socialização. Eles (alunos) não conhecem as redes sociais até hoje”, destaca a diretora Andreia de Fátima Dias. É o fim da picada.

Com ônibus a cada três horas, o jeito é usar bicicleta ou gastar sola de sapato

A realidade é dura, empoeirada e de longas caminhadas para quem mora em Santo Antônio. Com o fim dos trilhos, a solução no deslocamento dos moradores ficou a cargo dos (poucos) ônibus da Viação Fazeni. E com direito a uma linha de papel: Rio Douro-Japeri. Sem brincadeira. Há 20 anos, a empresa entrou na Justiça e impediu a concorrente Viação Arcádia de continuar com o itinerário, sob alegação de que era a responsável pelo trecho.Nunca mais se viu um só veículo.

Desde então, a forma mais rápida para a população chegar ao Centro do município — a oito quilômetros — é dar a volta, pegar o ônibus até a cidade vizinha de Queimados e seguir num trem para Japeri. Tempo da viagem: 1h30. Mas tem que contar com a sorte. Os intervalos nas duas linhas operadas pela empresa Fazeni — a outra vai para Engenheiro Pedreira — chegam a três horas. E nada de tentar sair antes das 6h ou retornar após às 20h30. Os ônibus saem de circulação. O jeito, então, é caminhar.

Andar de cinco a seis quilômetros a pé ou ter uma bicicleta é obrigatório para chegar na hora marcada, principalmente, no emprego. Rotina há dez anos na vida do construtor Rogério Correia, que cansou de acordar antes das 3h e caminhar por duas horas, até comprar uma bicicleta. Ganhou 1h30 a mais de descanso. “Vou até Engenheiro Pedreira e deixo a bike lá na estação. Há risco de roubo, já aconteceram alguns, mas não há o que fazer.”

Se as dificuldades levam à criação de fórmulas de sobrevivência, na hora do perigo é a vez dos “anjos da guarda” Carlos Olímpio e Carlos Leôncio Teixeira. Cada qual com seu possante cumpre o papel de ambulância e transporte escolar ou alternativo. O comerciante Leôncio, a bordo do Fiat 147, é uma espécie de Samu. Sempre tem um vizinho na porta de casa à procura de socorro. Na última semana, uma senhora implorava por transporte dos filhos recém-nascidos até o hospital, no Rio. Tinha saído pouco antes, para ajudar um amigo no trabalho.

Movido pela tração nas quatro patas, o veículo do aposentado Olímpio é bem menos confortável, mas nunca rejeitado. Ajudou a levar até os alunos da escola Santo Antônio quando os ônibus escolares ficaram avariados. E, convenhamos, é bem mais adequado às estradas esburacadas e sem pavimento. Algumas, como a RJ-113, tem curiosas placas de sinalização indicando velocidade máxima de 40km. Mas é impossível andar a mais de 20. É a única via no Rio sem multa por excesso de velocidade. O DER-RJ informou que uma equipe técnica fará uma vistoria no local em 15 dias para avaliar as intervenções a serem feitas.

Alunos da Escola Municipal Santo Antônio têm aulas de informática duas vezes por semana. Eles só aprendem noções de Word%2C Excel e Powerpoint%2C pois falta sinal de InternetJoão Laet / Agência O Dia

Onde falta tudo e sobra carência

O bolsão com os seis bairros mais pobres em serviços do Rio de Janeiro, segundo o levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), tem 17 mil dos 99 mil moradores de Japeri e uma infinidade de carências. Pode parecer exagero, mas falta tudo. Nem mesmo o mais básico do comércio bate cartão. Faltam padaria, mercado, açougue, caixa eletrônico, farmácia... Para a compra diária, restam os bares e as micromercearias.

Poucas estradas são asfaltadas e a rede de esgoto é precária. Os bairros formam verdadeiros grotões com Índice de Desenvolvimento Humano baixo — é de apenas 0,59. Para se ter ideia do atraso social, todas as favelas do Rio de Janeiro ultrapassam estes números. No Morro da Pedreira, em Costa Barros, considerado um dos mais carentes, o número é de 0,6. A média no Brasil ficou em 0,72. O nível de escolaridade e a renda são os indicadores que mais impactam os números.

Os bairros de Santa Amélia, Santo Antônio, São Sebastião e Jardim Aljezur são praticamente vizinhos e convivem com as mesmas dificuldades. Mais ao centro do município, Santa Sofia está colada numa área mais povoada e cercada pela violência. A oeste, Colinas fica a poucos quilômetros do Centro de Japeri — nem na sede tem agência bancária.

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