Por tabata.uchoa
'A maior reclamação que a gente recebia era sobre abordagens violentas e desrespeitosas'%2C diz Edson DinizEstefan Radovicz / Agência O Dia

Rio - A ocupação das Forças Armadas nos Complexos do Alemão, Penha e da Maré movimentou a Justiça Militar no Rio desde 2010 quase 15 vezes mais do que nos 25 anos anteriores. Em pesquisa nas decisões do arquivo digital do site do Superior Tribunal Militar, o DIA localizou 32 processos contra civis por desacato no Rio de 1985 a 2010. Como a série ‘Tribunais de Repressão’ mostrou ontem, nos últimos cinco anos as missões militares nas favelas cariocas geraram, até agora, 64 processos por desacato, desobediência e resistência.

Os números causaram surpresa em organizações de direitos humanos e especialistas na Justiça Militar. Edson Diniz, diretor da ONG Redes da Maré, acredita que os dados retratam as reclamações dos moradores. “Isso reflete bem como foi essa relação carregada de tensão e violência. A maior reclamação que a gente recebia era sobre abordagens violentas e, muitas vezes, desrespeitosas. Chegamos a falar isso para os comandantes. Esses números têm a ver com as abordagens”, avalia Diniz.

Rosa Cardoso, presidente da Comissão da Verdade do Rio e ex-advogada de presos políticos, disse estar assustada com a quantidade de processos e lembrou que a Comissão Nacional da Verdade recomendou, em seu relatório final, o fim das justiças militares estaduais por considerá-las parte da herança da ditadura. “Esses dados mostram que nas áreas periféricas, nas favelas, os militares se comportam com a mesma virulência que se comportavam durante a ditadura e claramente utilizando um artigo do código penal militar que é inconstitucional”, observa Rosa.

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De acordo com Angela Moreira, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas especializada em Justiça Militar, esses tribunais funcionam da mesma forma como na época da ditadura. “Os julgamentos dos crimes de segurança nacional e políticos não são mais sua atribuição, mas ela continua com o mesmo número de ministros, mesma função de primeira e segunda instância. O Código Penal Militar (CPM) vigente ainda é dispositivo editado na ditadura, em 1969”, explica Angela.

O CPM entrou em vigor através de decreto-lei quando a Junta Militar assumiu a presidência durante a transição entre os ditadores Artur da Costa Silva e Emílio Garrastazú Médici.

Desde meados do ano passado, organizações e partidos políticos se mobilizam para tentar impedir que civis continuem sendo julgados pela Justiça Militar. O projeto ‘Desmilitarização da Justiça’, da ONG Meu Rio, está reunindo casos e informações sobre o assunto.

A principal aposta está na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 289, pedida pela Procuradoria Geral da República. O relator da ação é o ministro Gilmar Mendes.

“É tudo tão grave que as pessoas estão traumatizadas. Não bastasse serem vítimas de violência das Forças Armadas, posteriormente ainda foram tratadas como criminosas e, na maioria das vezes, condenadas pelos Tribunais Militares”, diz Guilherme Pimentel, integrante da ONG Meu Rio.

Homem visitava a família e acabou preso por desacato

Como tantas outras vezes, o representante comercial Fábio Faria foi com a mulher visitar parentes na Maré. Era abril de 2014 e aniversário de 5 anos do filho de uma comadre. Quando ele se preparava para ir embora, dentro de seu carro, foi surpreendido com um fuzil colocado contra seu peito através do vidro aberto do automóvel.

“Empurrei o fuzil de volta e perguntei para ele: ‘Tá maluco?’”, conta Faria. Foi o início da discussão que reuniu diversos moradores e participantes da festa que acontecia na rua. No carro estavam ainda sua mulher, grávida, e outro casal que também se assustou com a abordagem abrupta. De acordo com Faria, eram pelo menos oito militares do Exército, e eles disseram que decidiram revistar o veículo por considerá-lo suspeito.

Após a averiguação, nada foi encontrado. “Quando começou a juntar gente, o cabo passou a dizer que eu dei um tapa nele e quis colocar um lacre nos meus pulsos porque eles estavam sem algemas. Eu não deixei. Não sou bandido”, relembra ele.

Faria diz que ele próprio sugeriu ir até uma delegacia para registrar o caso. Eles foram primeiro para a 21 ª DP (Bonsucesso) e lá o delegado orientou os militares dizendo que a ocorrência devia ser oficializada na Delegacia Militar, no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR).

Foi nesse momento que Faria percebeu que estava preso. No dia seguinte, foi encaminhado ao presídio de Bangu. “Passei um dia inteiro sem água ou comida dentro do camburão, enquanto eles recolhiam presos. Estava tão cheio que não tinha ar e eu passei mal. Vomitei várias vezes”, revela.

Ele passou três dias no presídio até conseguir liberdade provisória. Em maio deste ano, foi condenado a seis meses de detenção, mas a pena foi substituída por um monitoramento periódico a cada três meses, além de uma série de proibições como frequentar boates e se ausentar do estado sem autorização. “No julgamento, ninguém perguntou o que eu passei. Ainda disseram que o testemunho da minha mulher não servia porque ela não seria obrigada a dizer a verdade”, desabafa.

PROJETO DE LEI QUER TIRAR JULGAMENTO DE CIVIS DA JUSTIÇA MILITAR

Outra contestação ao julgamento de civis na Justiça Militar foi feita através do projeto de lei 7.770, apresentado em 2014 pelos deputados federais do Psol.

“Nós vamos percebendo no exercício do mandato que ainda existe muito entulho autoritário. Não só na legislação, mas nas práticas do estado e das intituições. O que aconteceu na Maré é a confirmação do absurdo disso, e a gente vai fazendo propostas de revogação e de democratização do estado”, afirma o deputado Chico Alencar (Psol/RJ).

O projeto está na mesa diretora aguardando discussão devido a outras duas propostas que também tratam de temas da Justiça Militar. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça emitiu um parecer criticando os gastos e decidiu estudar até a extinção do órgão.

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