Rio - Destruição de documentos, sequestros temporários, detenção e depoimentos dentro de hospitais. Práticas de agentes da ditadura no auge da repressão nos anos 1970 voltam a aparecer nas denúncias de moradores dos complexos do Alemão e da Maré. O DIA encerra a série ‘Tribunais da Repressão’ com relatos de um cotidiano de violência e medo em meio às prisões por desacato, desobediência e resistência nas operações de militares nas favelas cariocas. A Comissão de Direitos Humanos da Alerj articula uma audiência pública em Brasília para cobrar esclarecimentos.
Jonas (nome fictício), 23 anos, sai de casa na Maré mais alerta do que antes. Preocupado com retaliações, ele pediu sigilo sobre seu nome. A reportagem teve acesso ao processo no qual Jonas conta que em julho de 2014 caminhava com seu cachorro quando passou por 4 militares e ouviu um sinal.
Esvaziou os bolsos, tirou o boné e levantou a blusa. Nada irregular foi encontrado. Um dos militares mandou que encostasse na parede e disse que ele estava “fazendo gracinha”. Jonas já estava de costas quando, no afastar das pernas, recebeu um chute na esquerda, já machucada por uma lesão no trabalho.
A discussão entre os dois aumentou e, segundo Jonas, o militar jogou spray de pimenta em seu rosto e lhe deu voz de prisão. Inconformado, ele admite que resistiu. “Não estava fazendo nada de errado”, disse. O auxiliar de pedreiro foi imobilizado e colocado em uma viatura que deveria ter ido direto para a delegacia militar no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR). Segundo ele, porém, os militares deram voltas durante cerca de meia hora, e ele ainda recebeu uma coronhada na cabeça.
Depois, Jonas foi levado à UPA de Manguinhos antes de ir ao CPOR para receber atendimento nos ferimentos. No entanto, os documentos de entrada na unidade desapareceram, e a defesa tenta localizar o prontuário. Antes de cumprir o trâmite para ir ao presídio, Jonas foi levado a um médico militar e não ao IML para o exame de corpo de delito. A única lesão constatada é a da perna, embora o profissional descreva que o “examinado relata agressão física”.
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Já o sargento que revistou Jonas justifica a abordagem dizendo que parou o morador por ser “um cidadão com antecedentes de ofensa à tropa”. O militar acusa o auxiliar de pedreiro de tê-lo ofendido e mordido sua mão na hora em que foi algemá-lo. Jonas ficou preso três dias e o processo segue na Justiça Militar do Rio.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, deputado Marcelo Freixo, disse que está articulando uma audiência pública no Congresso Nacional para debater uma alternativa ao julgamento de civis pela Justiça Militar. “Nos últimos anos, a comissão recebeu inúmeras reclamações de moradores de favelas ocupadas pelo Exército. Vamos propor à Comissão da Câmara Federal a realização de uma audiência pública conjunta, para buscar uma solução institucional para esse drama”, defende Freixo.
No domingo, O DIA publicou um levantamento feito em parceria com a ONG Justiça Global sobre a existência de 64 processos por desacato, desobediência e resistência de civis que moram ou circulam nas comunidades ocupadas pelas Forças Armadas desde 2010.
Mulher tem três dedos quebrados
A maioria dos processados por desacato são do sexo masculino, mas no Complexo do Alemão, em 2011, nem mulheres foram poupadas. Em depoimento dado ao projeto “Desmilitarização da Justiça”, da ONG Meu Rio, Tamara (nome fictício), então com 22 anos, contou que era madrugada quando saiu de casa para socorrer um vizinho que pedia ajuda.
Ele estava sendo preso e, ao tentar saber o que acontecia, Tamara recebeu um tiro de borracha no pé esquerdo. O resultado foram 3 dedos quebrados. No hospital, ela teria se recusado a assinar um papel em branco apresentado por um oficial e terminou acusada de desacato. Foi condenada a seis meses de prisão, mas cumpre a pena em liberdade monitorada pela Justiça Militar. Os militares envolvidos no caso não foram processados.
BRASIL NUNCA MAIS COMPLETA 30 ANOS
No mesmo momento em que os civis retornam em grande número ao banco dos réus na Justiça Militar no Rio, o projeto Brasil Nunca Mais (BNM) completa 30 anos de lançamento. Coordenado pelo reverendo Jaime Wright e Dom Paulo Evaristo Arns nos anos 1980, a iniciativa reuniu 900 mil páginas de processos movidos contra presos políticos no Superior Tribunal Militar.
O BNM pretendia organizar as informações sobre as torturas e evitar a destruição da documentação. A posterior divulgação também faria um papel educativo junto à sociedade. Para isso foi montada uma força-tarefa com os advogados dos presos em Brasília que copiavam os processos clandestinamente. A documentação era depois repassada para São Paulo. Além dos documentos, os coordenadores decidiram fazer um livro na tentativa de reunir os principais dados sobre as vítimas do regime militar.
Assim, quatro meses após o fim dos governos militares, em 15 de julho de 1985, foi lançado o livro “Brasil: Nunca Mais”. O livro foi reimpresso 20 vezes somente nos seus dois primeiros anos de vida. Hoje está na na sua 40ª edição. A documentação está integralmente disponível no site bnmdigital.mpf.mp.br. A presidente do Tortura Nunca Mais/RJ, Victoria Grabois, disse que essa explosão de casos de civis processados na Justiça Militar é inadmissível. “Nós vivemos em uma democracia, não tem sentido que os civis sejam condenados por militares. É uma aberração que estes tribunais tenham apenas um juiz civil”, critica Victoria.
Ela diz que o grupo também aderiu ao movimento pelo fim da Justiça Militar. A impulsão veio pelo caso do cadete Márcio Lapoente, que morreu torturado na Academia de Agulhas Negras, em 1990. “A família entrou com um processo contra os envolvidos e o caso foi para a Justiça Militar. É claro que os acusados foram absolvidos”, conta.