Por tabata.uchoa

Rio - Os alegres tons de azul das portas e janelas fechadas contrastavam com o céu cinzento ao final de uma manhã chuvosa. A pequena praça vazia ecoava um silêncio que, em muito, se distancia da descrição fornecida pelo autor Aluísio Azevedo sobre as antigas moradias coletivas do Brasil colonial.

'Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava%2C abrindo%2C não os olhos%2C mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas' (Trecho de 'O Cortiço')Paulo Araújo / Agência O Dia

O número 34 da Rua Senador Pompeu, no Centro, guarda memórias dos tempos em que cavalos e charretes ocupavam o espaço hoje destinado ao convívio dos moradores. Após 125 anos da publicação do livro ‘O Cortiço’, o Rio conserva moradias típicas dos séculos 19 e 20 que inspiraram um dos mais famosos romances brasileiros. Caracterizados pelo uso coletivo dos banheiros e área de serviço, os cortiços abrigavam parte da população de baixa renda até a reforma urbana iniciada pelo prefeito Pereira Passos em 1902.

Publicado em 1890, ‘O Cortiço’ é considerado obra-prima do naturalismo-realismo brasileiro. Apesar do clima de desordem descrito no livro, o clima frequentemente é de confraternização. “Somos como uma grande família. No primeiro ou no último domingo do mês fazemos um almoço ou jantar coletivo e nunca deixamos de comemorar Natal e Ano Novo”, contou a aposentada Sônia Maria Silvério, de 66 anos. Neto de Sônia e morador do cortiço desde os 9 anos, o jovem Igor Silvério, de 21 anos, compara a moradia à conhecida vila das telinhas, frequentada por habitantes cheios de discordâncias e, ainda assim, unidos.

Cenário diferente da rotina relatada no romance

Após a reforma promovida pela prefeitura em 2003, por meio do programa Novas Alternativas, os 23 cômodos da moradia ganharam cozinha e banheiro privativos, acabando com o revezamento para o uso dos espaços. O tanque de lavar roupas coletivo, herança do século XIX, está relegado ao esquecimento. Agora, todos os moradores possuem máquinas de lavar.

Com as mudanças, o ‘zunzum’ descrito no romance de Aluísio Azevedo não faz mais parte do cotidiano da diarista Marlúcia Medeiros, de 58 anos. Como a maioria dos habitantes do local, ela chegou após a reforma para viver com os filhos, de 38 e 35 anos. “Gosto daqui porque é muito tranquilo. O pessoal costuma ficar fora o dia inteiro. Além disso, é perto do meu trabalho e fácil para meus filhos”, explicou Marlúcia.

Na mudança, os moradores sorteados pela prefeitura concordaram em pagar a quantia de R$ 150 mensais até 2018, quando se tornarão proprietários dos imóveis. Embora a construção tenha sido adquirida pela Caixa Econômica Federal e tombada pelo patrimônio histórico da cidade, a manutenção do espaço é de inteira responsabilidade dos habitantes.

“Ainda temos muito problema de infiltração e tentamos melhorar ao máximo o que podemos. A verdade é que os moradores estão cuidando mesmo do patrimônio. Compramos até piso para refazer o pátio”, garantiu dona Sônia.

Sônia e o neto Igor no casarão da Senador PompeuSeverino Silva / Agência O Dia

INCENTIVO A REFORMAS E RESTAURAÇÕES DE LOCAIS

Secretaria de Habitação quer parceria para melhorar moradias

Com o objetivo de incentivar a reforma e a construção de moradias no Centro, a Secretaria Municipal de Habitação lançou, em 1995, o programa Novas Alternativas. O projeto foi responsável pela revitalização de cortiços na região e está estagnado desde 2004 por falta de investimentos. O casarão da Senador Pompeu 34 foi o último a ser restaurado. Segundo o secretário de Habitação, Carlos Portinho, a secretaria estuda formas de retomar a proposta para mais habitantes permanecerem em seu bairro de origem. “Na segunda fase do ‘Minha Casa, Minha Vida’, alguns terrenos que mapeamos foram inseridos no programa. Esperamos continuar a incluir o Centro nas áreas do projeto e conseguir parcerias público-privadas para a reforma de antigas moradias.” Segundo o secretário, a construção de novos cortiços não será incentivada, uma vez que o modelo é considerado insalubre e já não atende as expectativas da população.
O arquiteto e historiador Milton Teixeira encontrou o local onde teria sido o cortiço que inspirou o romance, na atual Rua da Assunção, em Botafogo, onde há cortes na pedra citada no livro.

A dura rotina de quem tem que dividir o espaço

Na Rua Sacadura Cabral 295, a situação é um pouco diferente. Reformado pelo mesmo programa em 1998, o cortiço mantém os banheiros e tanques coletivos. Os 16 apartamentos se dividem entre os três andares da construção. Cada andar conta com dois chuveiros e dois vasos sanitários, cuja limpeza fica a cargo dos próprios moradores da ala.

A farmacêutica Elen Hanauer, de 56 anos, mudou-se para o cortiço em 2001 com os quatro filhos, após divorciar-se do marido. Elen assumiu sozinha a responsabilidade da limpeza do segundo andar. “Viver em espaço coletivo é muito complicado. Às vezes as pessoas não se disponibilizam a limpar, ou não querem dividir o material. Para evitar confusão, acabo fazendo por minha conta”, desabafou.

A organização do banheiro é a única reclamação do aposentado José Braselino dos Reis, de 65 anos. Por ter trabalhado como eletricista, bombeiro e encarregado de obras, seu José é o ‘faz tudo’ da residência: cuida da pintura, troca os chuveiros e limpa a caixa d'água.

“Sou eu que divido as contas de água e luz e coloco no quadro para os moradores”, explicou. Mesmo com as dificuldades, o aposentado garante que é possível viver bem. “Se alguém dá muito problema ou reclama demais, a gente faz um abaixo-assinado e tira, mas é difícil de acontecer”, ressaltou, com autoridade de quem faz tudo, o aposentado.

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