Rio - ‘Vieram três pra me matar. Não deixaram nem eu me explicar.” Um susto e ameaça de morte, foi o que aconteceu no ano passado com o ambulante K., de 41 anos. Ele foi confundido com um assaltante no bairro Fonseca, em Niterói, e por pouco não foi linchado. Estudos mostram que o pesadelo experimentado por K. não é uma exceção.
Uma pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), que estudou casos de linchamento de 1980 até 2006, constatou que o Brasil é o país que mais lincha no mundo. Nesse período, foram 1179 casos. O Estado do Rio de Janeiro aparece em segundo lugar com 204 justiçamentos. Em primeiro vem São Paulo, com 568.
No Rio, o linchamento mais recente ocorreu no domingo passado na Rocinha. Newton Costa Silva, de 54, anos. Newton foi encontrado morto e amarrado em um poste na Estrada da Gávea, depois de agredir com uma barra de ferro um bebê, uma menina e a mãe deles.
Mortos assim são estudados há quatro décadas pelo sociólogo José de Souza Martins, professor da USP que acaba de lançar mais um livro sobre o tema ‘Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil’. Sua última pesquisa traz dados aterrorizantes. Ele analisou 60 anos de justiçamentos e concluiu que mais de um milhão de brasileiros já participaram de tentativas de linchamento no país.
No estudo, 2.579 pessoas foram alcançadas por linchamentos consumados e tentativas de linchamentos. Apenas 1.150 (44,6%) foram salvas. Outras 1.221 (47,3%) foram capturadas pela população e agredidas — feridas ou mortas.
“A tendência dos linchamentos é crescer, porque as instituições públicas não se mostram eficazes no cumprimento de suas funções”, resume o sociólogo. Em sua visão, os linchamentos são acontecimentos punitivos e de ódio.
“Os linchamentos expressam uma crise de desagregação social. São muito mais do que um ato a mais de violência. Expressam o tumultuado empenho da sociedade em ‘restabelecer’ a ordem onde foi rompida. Esses linchamentos, são claramente punitivos e, na maioria das vezes vingativos”, conclui o autor, professor catedrático da USP.
Agressores gostam de se filmar
A autora da pesquisa do Núcleo de Violência da USP, Ariadne Natal, alerta para um outro problema. De acordo com ela, o recurso da tecnologia (filmagem) nesses atos, são vistos de uma forma positiva para os agressores.
“Aqueles que filmam e compartilham destes vídeos, estão alimentando a visibilidade do ato. Esse fenômeno, que se limitaria a um contexto local, ganha uma dimensão muito maior. A exposição dos casos pode ter um papel de difundir a prática e criar um ambiente favorável a novos casos linchamentos”, disse a pesquisadora.
Ainda segundo ela, os comentários destes vídeos parabenizam os populares pela ação. Com isso, fica claro que aquele tipo de ação não é condenável, mas aceitável e até mesmo desejável.
Identidade com a vítima
O perfil de quem agride ou lincha alguém não é totalmente conhecido. Segundo a psicóloga Aline Gomes, o comportamento agressivo e a atitude de atacar, tomada por um cidadão de bem, podem ter relação com a identificação da pessoa com o agredido.
“O que faz essa pessoa que nunca se envolveu em uma briga agir assim são os valores que a regem. No momento em que algum ato fere a moral deste cidadão de bem, ele passa a querer justiça”, resume.
Normalmente a identificação com a vítima aflora o sentimento. Essa pessoa passa a ter um comportamento agressivo porque se põe no lugar da vítima. Nesse momento, sua parte racional fica apagada e somente a parte emocional ‘comanda’. “Ela então toma atitudes irracionais”, comenta a psicóloga.
OAB condena barbárie e separa justiça de justiçamento
“As iniciativas de linchamentos são abomináveis, pois somente agravam e estimulam a violência, não sendo solução nem para o desejo de justiça e nem de segurança”, resume o vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Aderson Bussinger.
Quando um grupo resolve espancar pessoas que considera criminosos, é sinal de barbárie, de retrocesso social, segundo o representante da OAB. “Além de um crime não justificar outro, nada assegura que as pessoas linchadas sejam realmente culpadas, pois não passaram por um processo de apuração e julgamento”.
Bussinger insiste que os linchamentos merecem repúdio. “Aquele que lincha supostos criminosos hoje, poderá ser o linchado de amanhã”. conclui o vice-presidente. “A vontade de justiça deve ser canalizada para cobrar soluções do Estado para os graves problemas de segurança que vivemos”.
Reportagem do estagiário Vinícius Amparo