Por felipe.martins

Rio - A tarefa de biografar Abdias Nascimento, uma das mais importantes figuras do movimento negro brasileiro, coube a Elisa Larkin Nascimento, sua viúva, doutora em Psicologia e diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros (Ipeafro). Voz ativa do movimento negro no Congresso Nacional defendia, na década de 1980, a criação do Dia Nacional da Consciência Negra e o ensino da história e cultura afrobrasileira nas escolas , ideias que só se tornaram realidade anos depois, e provas inequívocas de que Abdias era a frente de seu tempo. Morto em 2011 aos 97 anos, depois de uma vida devotada praticamente à militância desde 1930, o ex-senador e ex-deputado deixou um vasto legado.

Abdias Nascimento é uma das mais importantes figuras da história do movimento negroAlexandre Brum / Agência O Dia

Por onde passou, dedicou-se a combater o racismo, à valorização da ancestralidade afro-brasileira e dos direitos humanos. Teve uma trajetória múltipla, rica, revisitada em biografia escrita como parte da coleção ‘Grandes Vultos Que Honraram o Senado’, Em bate-papo com O DIA, a autora Elisa Nascimento fala dos avanços do movimento negro, relembra a luta do marido contra o mito da "democracia racial" e a ideia de que o Brasil não é um país racista. "O racismo faz parte do cotidiano do brasileiro", afirma.

O DIA: Abdias lutava contra a difundida ideia da "democracia racial", que coloca no fato do Brasil ser um país miscigenado a esperança para a neutralização das hierarquias de cor no país. Casos recentes como da jornalista Maria Júlia Coutinho, no Jornal Nacional da TV Globo, alvo de comentários preconceituosos nas redes sociais e da menina Kailane Campos, de 11 anos, apedrejada ao sair de um culto de Candomblé na Zona Norte do Rio, foram crimes que acenderam o debate público. Somos racistas ou vivemos numa democracia racial? As demandas do movimento negro avançaram desde Abdias?

Elisa: A ideia de uma democracia racial continua falsa como antes, no tempo de Abdias. Esses exemplos que você mencionou são apenas casos que atingiram grande repercussão, mas incidentes assim acontecem todos os dias e fazem parte da rotina da população brasileira. Foram feitas políticas públicas, órgãos governamentais e dispositivos legislativos que são referência para se construir uma nação sem racismo. Mas ele continua, e se exarceba a cada avanço. O racismo não é pessoal, individualizado, é institucional. Vai além do insulto racial.

Onde há essa institucionalização?

Em 1978, Abdias escreveu um livro sobre o genocídio negro, e hoje o que observamos é um verdadeiro genocídio da juventudade negra. São dezenas, centenas de jovens negros assassinatos cotidianamente, tudo isto está fartamente documentado e passou a ser naturalizado como se fosse uma rotina. Pouco se escuta falar disso. A questão racial segue muito viva e importante desde Abdias. Segue igual, também, a resistência da sociedade em tratar do tema e encará-lo de frente.

No próximo dia 20 de novembro, algumas opiniões de setores mais conservadores, que encontram eco nas redes sociais, voltarão a questionar o porquê da existência de um Dia da Consciência Negra, e não um Dia da Consciência Branca. O fazem ao falar do Dia do Orgulho LGBT e pedir o Dia do Orgulho Hétero, por exemplo. Como responder esses questionamentos?

São reações aos ganhos que o movimento negro conseguiu com sua luta, desde sempre. Todos os dias são da consciência branca, porque é o que rege a maneira de pensar em todos os referenciais da cultura brasileira e ocidental, e isso se dá de uma forma silenciada. Houve uma distorção poderosa que fez essa identidade do branco se tornasse o "normal" do ser humano. O dia da Consciência Negra tem a ver com a manifestação de algo que foi reprimido, negado e jogado basicamente no lixo durante séculos. É a valorização de uma identidade que foi sempre negada.

Qual era a ideia do Abdias ao defender a inclusão da história e cultura afro-brasileira no currículo escolar?

Era tentar trazer a cultura da matriz africana para o palco do ensino nacional com o devido peso e corrigindo às grandes distorções que caracterizam as pessoas africanas nas nossas escolas.Hoje existe a lei, e a iniciativa de educadores que não querem apenas mostrar a criança negra que ela também está na história, mas urge a tentativa de desconstruir estereótipos. Os negros na história não são só atores de música e dança, mas são cultura, instituições, dramaturgia, poética. É preciso ir antes da Grécia Antiga na História para situar o negro. A nacionalidade brasileira fica capenga quando não reconhece a maioria da sua gente.

Como era a relação de Abdias com Leonel Brizola, à época da fundação do PDT, na década de 1980?

Eles eram do PTB fundado pelo Getúlio Vargas, e que tinha o João Goulart, e se encontraram já na década de 1960. No exílio, por conta da ditadura militar, eles se tornaram mais próximos. E o Brizola teve a sensibilidade de ouvir as ponderações do Abdias sobre a questão racial. Era um tema que a esquerda da época, como muitas vezes faz hoje, trata como uma questão menor. E o Brizola colocou esse tema no lugar de destaque. Testemunhei aquelas conversas e fiquei muito impressionada.

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