Rio - O Rio de Janeiro acorda com mais humildade, esperança e generosidade nesta sexta-feira, se forem seguidos os conselhos do ex-presidente e senador do Uruguai José ‘Pepe’ Mujica, de 80 anos. Ele esteve ontem na cidade para ser homenageado e arrastou centenas de jovens para a Uerj, onde foi ovacionado após pregar o fim dos privilégios para políticos, defender a democracia e dizer que a “mudança do mundo começa por nós mesmos”. Mais cedo, ao comentar o momento político brasileiro, disse que o país tem força suficiente para superar as dificuldades e defendeu a descriminalização da maconha — o Uruguai é um dos países com legislação mais avançada sobre drogas no mundo.
Ex-guerrilheiro no combate à ditadura militar uruguaia dos anos 1970, Mujica tornou-se presidente do país em 2010 e ficou no cargo até março deste ano. Além da mudança na política de drogas, apoiou a legalização do aborto e o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Notabilizou-se, também, pelo estilo de vida longe dos padrões políticos (especialmente os brasileiros): abriu mão dos benefícios e fez sua vida com apenas 10% do salário, uma casa de um quarto e um fusca ano 1978.
“Políticos devem viver uma vida simples como a maioria, e não como uma minoria privilegiada”, declarou o uruguaio, durante homenagem na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Centro do Rio. Ele foi eleito ‘personalidade do ano’ pela Federação das Câmaras de Comércio e Indústria da América do Sul.
Perguntado sobre o atual momento brasileiro, em que denúncias de corrupção se multiplicam contra quase todos os partidos, Mujica afirmou que o problema do país é o “derrotismo”. “O Brasil tem força suficiente para superar as dificuldades. O problema é que vocês se apegam ao derrotismo, e acham que nada serve para nada. Vocês têm um país maravilhoso, só depende de vocês para seguir em frente.”
Depois da pausa para o almoço num botequim na Tijuca, Mujica foi para o hotel, tirou um cochilo e foi para Uerj, onde foi recepcionado como astro, com direito a bandeiras e cantos. Quando questionado sobre a falta de líderes políticos de esquerda e a crise de representatividade do sistema político, o ex-presidente uruguaio afirmou que há “crise nos valores da nossa civilização”. “O problema muitas vezes não são só os presidentes, toda a corte política tem problemas”, respondeu, ovacionado. A plateia, então, entoou cânticos contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e “não vai ter golpe”, em referência às manifestações que querem o impeachment de Dilma Rousseff.
Almoço regado a caipirinha e cerveja
O ex-presidente e senador do Uruguai José Pepe Mujica provou mais uma vez sua vocação para simplicidade e almoçou longe de qualquer restaurante badalado do Rio de Janeiro: optou pelo Bar do José, na esquina das ruas Barão de Ubá e Santa Amélia, na Tijuca. Comandado há 14 anos pelo cearense José Alves Ferreira, de 62 anos, o bar serviu feijoada, rabada com agrião, cerveja e caipirinha para Mujica e sua comitiva. O uruguaio saboreou a culinária de boteco ao som de Amado Batista. “Escolhi a trilha sonora porque gosto e deu um clima mais legal pro almoço. Nunca imaginei ter um presidente aqui”, afirmou cearense, sentado na mesma cadeira de madeira onde horas antes sentara Mujica.
José Alves veio do Ceará para o Rio há 44 anos “tentar a vida”. Depois de rodar por bares como garçom, gerente e atendente, conseguiu abrir o pequeno bar numa esquina tijucana. Nas paredes, as garrafas de aguardente, conhaque e cachaça logo dividirão espaço com um grande pôster. “Quero a minha foto com o Mujica naquela parede ali”, apontou ele, que “não conhecia muito bem” o uruguaio, e não espera ser visitado por um político daqui tão cedo. “Te falar? Político brasileiro é muito cheio de frescura. Aqui é só rabada, feijoada, mocotó.”
A clientela cativa do bar se surpreendeu ao ver Mujica na hora do almoço. “Eu não aguentei: tive que dizer ao presidente que ele estava sentado na cadeira onde almoço todos os dias”, divertiu-se Cláudio Ferreira, 58 anos, que trabalha na região. “Um cara humilde demais, o Mujica. Comeu bem a rabada. Tive que sugerir ao Zé para levar a laranja pra ele, se não a comida fica pesada demais”, contou.
Na passagem do ilustre visitante, um lamento: a ausência do tradicional fusca que fica sempre estacionado na Rua Santa Amélia. “Ele ia gostar de ver o fusquinha, bem cuidado igual ao dele!”
Liberação das drogas
Na ABI e na Uerj, Pepe Mujica falou sobre a necessidade de alterar a política de drogas no Brasil e no mundo. Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidirá sobre a liberação do porte para uso próprio de entorpecentes.
Na época em que era presidente, o hoje senador uruguaio sancionou lei que coloca nas mãos do Estado a produção, distribuição e venda de maconha. “O narcotráfico é pior que a droga. Estamos fazendo uma experiência no Uruguai. Não sabemos no que vai dar. Sabemos que o que vínhamos fazendo não dava resultado. Se você quer mudar alguma coisa, não pode ficar fazendo sempre a mesma coisa. Isso multiplica a violência”, disse.
Na Uerj, foi ovacionado ao se posicionar contra a redução da maioridade penal. Mujica também falou da necessidade de construir novos valores para o capitalismo e para a felicidade das pessoas.
CNBB pede ‘lucidez’ no debate
Em nota divulgada na quinta-feira, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pediu “lucidez” no debate sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, e afirmou que a medida vai legalizar “uma cadeia de tráfico e de comércio, sem estrutura jurídica para controlá-la”.
Na nota, a CNBB afirmou que liberar o porte de entorpecentes vai “agravar o problema da dependência química” e facilitar a “livre circulação” de drogas no país. Contrária à mudança na legislação atual, a entidade critica o argumento de que a norma em vigor viola o direito à privacidade.
“Na medida em que se libera, está se dizendo que não é um problema, não vai afetar nada e que é uma questão individual. Não, é uma questão social”, disse o vice-presidente da CNBB, dom Murilo Krieger.