Por tabata.uchoa
Rio - A violência fazia parte da rotina da garotinha alegre, de apenas quatros anos, que morava no apartamento 303 do Conjunto Habitacional Guaporé, em Brás de Pina, Zona Norte do Rio. Apesar disso, Micaella era conhecida pelo cativante sorriso que sempre trazia estampado no rosto. Naquele local, a menina foi assassinada. Os gritos de dor, o choro incontrolável e os apelos por clemência não eram abafados pelas paredes do pequeno quarto e sala. A vizinhança ouvia tudo o que se passava. Mas se fazia de surda.
Vizinhos se mostram arrependidos por não terem denunciado agressões de madrasta a MicaellaErnesto Carriço / Agência O Dia

“Ela judiava muito da criança. Batia com a cabeça dela na parede. Quinze dias antes de morrer, a Micaella levou uma surra tão grande que ficou uma semana na cama. Eu só escutava ela chorar. Chamar pela mãe, pelo pai... E a madrasta berrava: você está louca? Cala a boca”, contou ao DIA uma das vizinhas, que, com lágrimas nos olhos, se confessava arrependida por não ter denunciado. “Eu tinha medo dela (refere-se a Joelma Souza da Silva, 43, madrasta da menina presa como principal suspeita do crime). Às vezes tinha vontade de jogar uma pedra na janela do apartamento, para ver se ela parava de maltratar a criança. Mas não tive coragem”, lamenta.

‘SOMOS TODOS CULPADOS’
Micaella era barbaramente espancada. O laudo cadavérico emitido pelo Instituto Médico Legal (IML) indica ao menos 25 lesões no corpo franzino. A maior parte delas na cabeça. Tanto que a causa da morte mais provável é traumatismo craniano e edema encefálico.
O laudo cadavérico mostra que a menina tinha ao menos 25 lesões e indica suspeita de traumatismo cranianoDivulgação

“Somos todos culpados”, diz, sem hesitar, a professora Maria Regina Fay de Azambuja, da Faculdade de Direito da PUC-RS, especialista em violência doméstica contra crianças. Segundo ela, a mão que matou pode ser a da madrasta, mas o crime também foi cometido pela sociedade. “Uma negligência em cadeia. O pai, a mãe, a escola, os vizinhos, as autoridades, todos, ao se omitirem, contribuíram para a tragédia”, afirmou.

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Na Creche Municipal Tempo de Aprender, na Penha, onde Micaella começava a estudar, o remorso é visível. Uma professora que pediu para não ser identificada contou que as funcionárias notavam as marcas da violência, mas não imaginavam o que a pequena e animada menina passava. “Estamos muito sofridos. Às vezes a gente notava uns arranhões, mas parecia coisa de criança que se machuca durante a brincadeira”, contou. Segundo ela, as constantes faltas também chamavam a atenção. “Telefonávamos para saber os motivos e o pai sempre falava que a Micaella estava doente. Agora, entendemos. Ela estava marcada, com os hematomas aparentes, por isso não a traziam para a creche”, deduz.
DENÚNCIAS ANÔNIMAS
O delegado Alessandro Petralanda, da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), diz que o cidadão tem que denunciar, mesmo que anonimamente. “Para isso, além do testemunho, pode-se flagrar por imagem ou áudio a agressão ao menor, para servir de provas documentais em um julgamento, reforçando a denúncia”, explica.
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A crueldade contra as crianças brasileiras não é prática exclusiva das classes mais pobres, relata a a coordenadora judiciária das Varas de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Rio, juíza Raquel Chrispino. “Há também Micaellas em casas com maior poder aquisitivo”, afirmou a magistrada, ressaltando que as denúncias de maus tratos e espancamentos de menores devem ser feitas antes que atinjam consequências mais graves.
Depois, não adianta nem chorar. E muito menos ameaçar de morte os acusados de cometer a violência. Quando a madrasta de Micaella, Joelma, e o pai da menina, Felipe Ramos da Silva, 30, foram presos pela Polícia Militar, na última segunda-feira, muitos moradores do Conjunto Habitacional Guaporé tentaram linchar o casal, mas foram contidos.
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Quando podiam ter feito algo para evitar a tragédia, não fizeram nada. A porta do apartamento 303 permanece fechada. Não se ouvem mais os gritos de dor, o choro incontrolável e os apelos por clemência. Os vizinhos, agora, são assombrados pelo silêncio.
Violência contra as crianças cresce mais do que contra os adultos
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O ‘Dossiê Criança e Adolescente 2015’, do Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP), mostra que a violência contra as crianças não para de crescer. Entre 2010 e 2014, o número anual de vítimas menores de 18 anos passou de 33.599 para 49.276, crescimento de 46,7%, contra aumento de 24,4% de vítimas maiores de idade.
Ao longo dos cinco anos, foram 213.290 vítimas menores, das quais 26,2% eram crianças (de zero a 11 anos). O documento revela ainda que a maior parte da violência contra a criança ocorre muitas vezes na sua própria residência. E é cometido geralmente por quem passa mais tempo com a criança (pai, mãe, avó, cuidador, babá, vizinho, etc.): 56,1% dos autores das infrações de “periclitação da vida e da saúde” são da própria família da vítima.