Por tamyres.matos
‘Conte-me e eu esqueço. Mostre-me e eu apenas me lembro. Envolva-me e eu compreendo’. João Carlos de Souza Leonardo, Mestre Kanoa, 48 anos, não precisa nem saber quem é Confúcio, pensador chinês do século 500 antes de Cristo autor da frase acima. Cego há 18 anos, ele sobe e desce as ladeiras da favela da Fallet três vezes por semana, de casa à quadra da Associação Atlética local, para preencher a vida de 56 crianças com aulas de capoeira e jongo.
Mestre Kanoa se apresentando a um de seus meninos antes de começar a jogarUanderson Fernandes / Agência O Dia

“Sem ver, tenho que usar a audição, a percepção e a intuição”, conta o mestre, em um bate-papo interrompido diversas vezes por suas crianças, ávidas por um instante de atenção que seja. “Mestre, tô com dor no pé”, choraminga uma pequenina, de no máximo cinco anos. “Onde, minha filha?”, retruca ele. “Aqui, ó”, rebate a menina, mostrando o dedinho pisado por um colega durante a roda. Bastou um beijo no local para que a dor passasse.

CIDADANIA E RESGATE
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“A capoeira é um instrumento de resgate, filho”, continua o mestre, exímio tocador de berimbau e atabaque, dono de potente voz grave que arrepia e envolve quem o ouve relembrando os antepassados em cantos de lamento, que servem de base para a prática do esporte. “Tem um menino aqui que teve o irmão morto em confronto com a polícia”, diz, enquanto chama o garoto para apresentá-lo.
“Ele sempre dizia que quando crescesse ia ser bandido para matar os PMs que assassinaram seu irmão. Mas a gente foi conversando, conversando, e hoje ele já diz que quer ser professor de capoeira, que vai se formar em Educação Física”.

O resgate citado por Kanoa, mestre que usa o carinho para disciplinar as crianças, não se limita à cidadania. Suas aulas de capoeira, que continua jogando magnificamente bem, são também uma lição viva da história negra no Brasil. Mesmo assim, Kanoa não escapa do preconceito: devido à raiz afro, perdeu crianças por conta de pais evangélicos, que veem feitiçaria no som do atabaque. Em pleno século 21...

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Más condições no trabalho e saúde pública tiraram visão do capoeirista
Perguntar a Kanoa como ele perdeu a visão foi um exercício de paciência em busca do momento certo. Mas o mestre não se importa em falar do assunto. Às vezes, dá até a impressão de que agradece o fato que mudou a sua vida.
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“Trabalhava na estiva, com pescado, em Cabo Frio, entrando e saindo de frigoríficos com temperaturas de até - 40º C”, relata. “Um dia, saí de um porão de navio e, quando o sol bateu na vista, tive o descolamento”. Kanoa foi ao médico e recebeu o diagnóstico: ou operava em 15 dias, ou perderia a visão definitivamente. Duas semanas depois rondando o SUS e ouvindo ‘nãos’ diariamente, e após tentar, sem sucesso, juntar dinheiro para pagar a operação na rede particular, deu-se a escuridão.
“Moro sozinho e tive de reaprender a fazer tudo. Hoje, me sustento com a pensão por invalidez e o dinheiro que recebo das aulas que dou em Santa Teresa. Tiro daqui, junto dali, e assim garanto as aulas das crianças”. Se existe outra frase para exemplificar Kanoa, “ensine pelo exemplo” é a melhor. Alguém duvida?