Por thiago.antunes
Rio - A escadaria é íngreme e tem degraus escavados na pedra. Em meio ao latido dos cachorros, atentos ao movimento estranho, o repórter sobe. Sorriso escancarado, a menina de seus 4 anos passa, descalça, sozinha e cabelos desgrenhados. Misturada à alegria, a camisa suja, sinal do almoço recém-conquistado. “Minha família está aqui há 70 anos”, começa Vítor Ferreira Soares, 35 anos, nascido no Santa Marta, em Botafogo. “Roemos o osso trazendo material aqui para cima nas costas, para construir nossas casas, e agora que tem estrada asfaltada e plano inclinado vão me tirar? Não saio”.
Por ‘não saio’ entenda-se ser removido. Desde 2008, Vítor e outras famílias do Pico, como é conhecido o local onde moram na comunidade, lutam para não entrar na estatística que está mudando a cara do Rio: 19.567 barracos e casas derrubados em nome do progresso, da ameaça de deslizamentos ou de obras de infraestrutura. Como nas favelas cada casa tem, em média, quatro moradores, chega-se à conta de 78.268 pessoas obrigadas a mudar de endereço, ônibus, vizinhança...
Damião%2C do Salgueiro%2C já deixou sua casa%3A ele vai morar em apartamento na comunidade da Tijuca Carlo Wrede / Agência O Dia

“Falta transparência à prefeitura”, critica Renata Neder, coordenadora de direitos humanos da Anistia Internacional. “Até hoje não nos informaram os nomes de quem foi removido, para onde e em que condições”. A prefeitura se defende. Alega que, até 2016, nenhuma pessoa viverá em área de risco — único e real objetivo do programa.

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Neder cita os casos da Vila Harmonia e da Barra 2, no Recreio, em que moradores foram retirados em nome do BRT TransOeste. Finda a obra, o trajeto não passou por lá. Já as construções imobiliárias tiveram um boom. O município garante que o processo de desapropriação é dos anos 70 e que a área que sobrou é um talude que limita um aterro. Mas qual a razão, para quem mora num barraco, recusar um apartamento? “No Santa Marta, cada habitação terá 37 m2. Na minha casa, tenho quatro pavimentos e cinco quartos. Minha história está aqui”, diz Vítor.
No Salgueiro, troca por casa é alvo de elogio
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Se há quem prometa resistir em suas casas, há também quem pense o contrário. Marco Antônio Damião, do Salgueiro, é um deles. O cozinheiro conta as horas para ocupar um dos apartamentos que a prefeitura ergue na comunidade, ao lado das residências do projeto ‘Cimento Social.’

“A área em que eu vivia era mesmo de risco. Não só minha casa, como outras. Quando chove, fica todo mundo com medo”, conta, caminhando em meio a escombros de barracos postos abaixo, mas cujos terrenos ainda não estão completamente limpos. 

Enquanto a casa não vem, Damião vive de aluguel social, que a própria prefeitura paga, numa casa na comunidade. “Aqui, onde ficava a minha casa, será erguida uma adutora”, explica. Ele conta que chegou a temer ser esquecido pela prefeitura, devido à demora entre a notificação e a derrubada de fato da casa. “Estou muito feliz porque vou ganhar uma casa, muito feliz mesmo”.
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Incerteza impede obras de melhoria
O ano era 1993. Dona Penha, cansada dos constantes tiroteios na Rocinha, decidiu se mudar para um lugar onde tivesse mais calma. O que ela não imaginava é que, meses depois de comprar um barraco por 5.800 cruzeiros na Vila Autódromo, seu pesadelo estivesse começando.
“Desde aquela época que esse menino tenta nos tirar”, diz, referindo-se ao prefeito Eduardo Paes, ‘prefeitinho’ da Barra na administração César Maia.
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Desde então, cada vez que põe um tijolo no barraco, Penha sofre. “Pobre, quando faz obra, faz aos pouquinhos. Tenho medo de melhorar a casa e eles derrubarem”, conta. No Santa Marta, Vítor vive o mesmo dilema. Guia turístico, dono de uma das primeiras construções do morro, gostaria de investir para receber em seu jardim suspenso, onde cria orquídeas em vasos de solas de sapatos. Mas ele não faz nada.
A espera o angustia. Com um contralaudo que nega ser a área de risco, raciocina que há outros interesses por trás da ameaça. “A estrada que vem por Laranjeiras foi pavimentada há pouco; há um plano inclinado chegando aqui e o trenzinho do Corcovado vive lotado. Por que querem me tirar?”. O governo do estado nega e diz que a área, de risco, será reflorestada. Com um laudo da Georio que condena a região, garante todos serão realocados no conjunto em construção na favela.
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Moradora da Providência diz que vizinhos a culpam por teleférico parado
A alguns quilômetros do Santa Marta, na Providência, Márcia Regina de Deus observa o teleférico pronto — mas sem funcionar. De sua janela, vê também o olhar torto que alguns vizinhos, antigos amigos, dirigem a ela quando passam pela casa. Ela acha que, para muitos deles, é a culpada pela não inauguração do projeto.
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“Temos uma liminar que impede novas remoções por falta de estudos de impacto ambiental e habitação”, diz Márcia, cuja casa está garantida pela lei. “Não sou contra a obra, sou contra a forma como foi feita. Tenho 54 anos de Providência. Minha história vai para onde?”.
Márcia aponta o teleférico%2C que ocupou a antiga praça%3A tristeza por ver os moradores divididos Carlo Wrede / Agência O Dia

Do outro lado do morro, o administrador de imóveis Roberto Marinho fala sobre a sensação de, a qualquer momento, ser expulso da casa onde vive há 37 anos. “É estranho viver sem saber o que vai acontecer no dia seguinte”, diz ele, quarto representante da geração dos Marinho na comunidade. “A prefeitura faz pressão psicológica. Uma vez, numa reunião com moradores, disseram que não tinha teleférico porque entramos na Justiça.”

A prefeitura garante que a história é diferente. Em nota enviada ao jornal, diz que tem feito reuniões com moradores, sempre com a presença de representante da Defensoria Pública, que conseguiu a liminar. E que refaz estudos para minimizar as remoções previstas no priojeto original. “Mas vai ser construído um plano inclinado após a estação do teleférico”, diz a nota. “A escadaria é íngreme e idosos e cadeirantes não têm opção de deslocamento.”
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'Esta é a maior remoção da história', Renata Neder - Anistia Internacional
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De fora, quem olha a casa recém-reformada na Praça São Salvador não imagina estar diante da sede de uma das mais respeitadas organizações mundiais: a Anistia Internacional. Lá, O DIA ouviu Renata Neder, coordenadora de direitos humanos da entidade, sobre o processo que muda a cara do Rio. Confira:
'É a maior remoção da história', diz coordenadora de direitos humanos da Anistia InternacionalCarlo Wrede / Agência O Dia

1. O que a senhora acha deste processo de remoção/realocação?
— Falta transparência. Esta é a maior remoção da história da cidade, maior que a de Pereira Passos, no início do século 20, e de Carlos Lacerda, nos anos 60.

2. A prefeitura alega que são obras de mobilidade ou em áreas de risco...
— Sabemos que, às vezes, são sim. Mas a prefeitura não nos diz quem saiu, de onde foi tirado e por que isso aconteceu. Também não sabemos qual o fator de risco e qual o laudo que identificou isso. Pedimos para saber os motivos, mas não respondem.

3. A remoção da Vila Autódromo alcançou casas fora do traçado?
— Sim. Faltou clareza sobre o traçado, pois uma curva determina que família vai sair. Além disso, não falaram do tempo de execução da saída, ou se existe alternativa ao traçado. O ideal é que se pense o projeto de forma que tenha o menor impacto. Só porque é favela não se deve garantir o direito à moradia?
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4. E o processo da favela da Restinga?
— Eles entraram na favela na noite de 16 de dezembro de 2010 e disseram que tinham de sair até o dia seguinte. Teve morador que ficou sem teto e se acorrentou à casa. Um desrespeito muito tramático.
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