Por thiago.antunes

Rio - Na semana passada defendi o enredo do Salgueiro e destaquei a parte que louvava as macumbas cariocas. Bastou para que, em meio a elogios que agradeço, eu recebesse e-mails de gente garantindo que vou “arder no inferno ao lado do demônio da escola de samba”. Um mais exaltado disse que foi a primeira e última vez que leu algo que escrevi e me chamou de ateu. Não entendi: sou ateu ou cultuo o diabo?

Eu sou um ateu inviável, caro ex-leitor. Por mais que tenha tentado exercer a descrença nos tempos de faculdade, fracassei. O invisível me pegou no colo desde o berço.

A minha relação com a religiosidade se manifesta até por uma questão estética, já que ritualizo a vida e lanço sobre as crenças um olhar afetuoso, sobretudo quando percebo que, onde campeia a escassez, as celebrações reconduzem o homem ao intangível, ao encantamento, ao espanto diante do que não pode ser racionalmente mensurado no mundo e, por conseguinte, nos humaniza. Sou um arrebatado pelos toques de tambores e me comovo com a beleza serena da Procissão do Senhor Morto.

Como eu poderia negar isso, se desde menino, ao lado das canções de ninar, ouvia a voz do ogan cantando um ponto de fundamento: “Atravessei o mar a nado / Foi por cima de dois barril / Só para ver a juremeira / e os caboclos do Brasil”.

Atravessar o mar a nado só para ver a juremeira: bela metáfora da disponibilidade de cruzar caminhos para olhar os outros; ter a disposição de enxergar saberes miúdos e se saber escolhido por eles; ser filho e aluno do tambor. Eu acredito na revolução do despacho na encruza, na alteridade da fala - língua do congo, canto nagô, virada de bugre na aldeia - e no alfanje de Ogum, deus que é meu pertencimento, iluminando, ao cortar os intolerantes da minha vida, o meu mundo na viração da plenitude.

Isso me comove, por ser coisa das deusas e dos deuses mais bonitos. Amores da minha vida, coisa que de mim ninguém tira, canto que canto para o meu filho, que haverá de cantar para meus netos. Eu creio na luta pela tolerância e pelo reconhecimento de outros olhares que podem fazer da vida neste canto do mundo, hoje tão machucado pelo ódio ao que não é convencional, algo mais interessante. Ex-leitor, eu espero que os tambores macumbeiros do Salgueiro não parem de bater.

São eles que me comovem e evocam em mim o estranhamento bonito e doloroso de um Brasil que, inventado talvez nos meus afetos desmesurados, haverá de ser, para os filhos dos meus filhos e dos teus filhos, a terra gentil das solidões compartilhadas. Receba meu abraço.

E-mail: luizantoniosimas67@gmail.com

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