Rio - A aluna pediu ao professor que revisasse sua prova. O professor o fez. Sentou-se com ela e foi explicando a razão de uma nota que não era, de fato, desprezível. Com os erros devidamente apontados, a menina, aluna universitária, olhos lacrimejantes, começou a manear a cabeça, reprovando a si mesma. O professor quis entender a razão daquela dor: "Oito é uma boa nota. E as notas são instrumentos que nos ajudam a perceber erros e acertos, evoluções. É um diagnóstico, apenas. O que houve? Por que essa angústia?"
A jovem sentiu confiança. Era a primeira prova daquele professor, que ela admirava. Com a manga da blusa, enxugou os olhos. Claudicante nos termos, explicou sem explicar: "Meu pai".
O professor esperou algum complemento. Depois de uma pausa mais prolongada do que o necessário, insistiu: "O que tem o seu pai?" A menina olhou para algum lugar que, certamente, seria o lugar do desconforto e voltou a lacrimejar. O professor esperou. Não perguntaria mais. Era preciso respeitar os sigilos daquele sentimento.
Ela, entretanto, prosseguiu: "Meu pai diz a todo mundo que eu tiro 10 em todas as provas, foi sempre assim, ele vai ficar decepcionado". Ela parecia que queria desenhar mais detalhes daquela relação, mas o choro agora veio sem economias.
O professor aguardou, olhou-a com ternura matinal. Havia disposição e experiência para ajudá-la a encontrar-se naqueles desencontros comuns em relações comuns dentro de casa. "Quer que eu aumente sua nota para você ficar tranquila e poder exibir um 10 para o seu pai? Acha que isso será bom para você?"
A menina surpreendeu-se com a oferta do professor. Ficou em conversa interna querendo pescar alguma resposta.
O professor prosseguiu: "Não acha que tenha chegado a hora de você ajudar o seu pai a perceber que erros e acertos nos compõem? Que você é maior do que as notas que tira?"
A menina soltou quase que um murmúrio: "Ele me julga perfeita".
A conversa estendeu-se um pouco mais. Para agradar ao pai, ela mentira muitas vezes. Desde sempre, ele a exibiu para os amigos. Dizia ela os poemas que decorava. Ensaiava fingir-se de doente para não ter que se expor a isso. Dizia o pai que ela era a melhor aluna da sala. Que nunca havia tirado nota diferente de 10. E, agora, ela chegara à universidade e como iria exibir algo diferente na primeira prova?
O professor tentava imaginar aquele pai. Lembrou-se de tantos outros que cobravam dos filhos o que nunca foram. De mentiras em mentiras, fingiam todos uma perfeição que não se encontra nem nos tratados que se espreguiçam nas bibliotecas.
A consciência da falibilidade nos faz mais humanos. O que significa ser o melhor de todos os alunos? Ser tratado pela pecha de genial não ajuda os que têm de aprender a comandar seus destinos. Responsabilidade por nunca errar é um erro. Erramos como necessidade vital. Caímos como consequência de cansaços e escolhas pouca refletidas. E aprendemos. E escolhemos melhor. E prosseguimos em busca de alguma aspiração. Isso, sim, é necessário. Ter uma aspiração, um tema para viver.
O pai não faz o que faz por desgostar da filha. Mas os desgostos que causa são desnecessários. Talvez devesse ele compartilhar as experiências pouco exitosas, as falências tantas que o ensinaram a arte inspiradora dos ressignificados. Lembrou-se aquele professor de um outro pai que exigia que fosse a filha uma juíza de Direito. Sonho que ele nunca conseguira realizar. A filha fracassou, segundo ela mesma. A cobrança era tão grande que os concursos se transformaram em tortura, e ela os repetia, um a um, com a imagem do sonho do pai em sua dolorida mente.
O amor não se esgota nas conquistas, mas na existência. A filha precisa sentir-se amada apenas por ser filha e não pelo imaginário colar com pérolas dos sucessos que o pai projetara. Projetar no outro a própria realização é um erro. O amor aprecia as imperfeições e as acaricia. E as unge com óleos corretos para os preparos necessários nos dias que antecedem aos outros que se sucederão em ganhos e perdas.
Pedras há em toda jornada, mas cabe aos pais refletir sobre as próprias exigências e imperfeições para não atingir, com dor irreparável, os seus filhos. Erros por amor também doem.
Aluna e professor se despediram. A nota permaneceria. Anotou ele um sopro de vontade na atitude daquela jovem de começar a se libertar das teias que não eram dela. Fácil, não seria e sabia disso o professor, mas exatamente para esses desentraves que um dia ele sonhou em dedicar os dias a professar, nas salas de aula, sua inegociável crença no ser humano. Com todas as suas imperfeições.
O sol desmaiava, enquanto ele reparava alguma sombra na aluna que seguia em frente. Era perfeito aquele cenário.
Gabriel Chalita é professor e escritor