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Arte: O Dia
Por Saturnino Braga Ex-senador e ex-prefeito do Rio

Rio - A versão que ainda predomina sobre a figura humana e política do ex-presidente João Goulart não faz justiça, nem de longe, à grandeza do seu significado histórico. A entrevista recentemente concedida por seu filho João Vicente ao jornalista Paulo Amorim recupera aspectos importantíssimos da gestão de Jango, culminando com a decisão, difícil e profundamente patriótica, de deixar o país e evitar sua transformação em campo de guerra internacional, com quase certa divisão em Brasil do Norte e Brasil do Sul, que era e será sempre projeto do Grande Império para diminuir a importância do nosso país.

Eu era um jovem e bisonho deputado federal do Partido Socialista Brasileiro, com um ano apenas de mandato, que vinha do BNDE cheio de ideias desenvolvimentistas e distributivistas das Reformas de Base. Observava atônito o tiroteio interno, intenso e barulhento, provocado por potências mundiais que se enfrentavam no auge da Guerra Fria, que dominou a política brasileira desde a posse de Jango.

Cuba tinha realizado sua revolução socialista, nas barbas do Império, com êxito surpreendente que assombrava o mundo e animava e impelia à luta a esquerda brasileira: se a pequenina Cuba tinha conseguido, quem poderia conter a grande revolução brasileira?

Kruchev, o grande líder soviético, radicalizava suas posições e provocava abertamente Kennedy, o igualmente grande líder americano: chegou a enviar a Cuba mísseis com ogivas nucleares! A humanidade esteve perto da extinção.

O PCB, o velho, experiente, cauteloso Partidão recebeu instruções de Moscou para também radicalizar. E foi uma das forças mais influentes no avanço desordenado e pretensamente imbatível das forças revolucionárias. Era o momento histórico: o presidente da República, comandante das Forças Armadas, era um velho e confiável companheiro de lutas!

A oposição conservadora e udenista (golpista), conseguiu mais que dobrar sua força política, com a adesão do poderoso e apavorado PSD (incluindo seu grande líder Kubitchek), e partiu para a articulação com os chefes militares, com a colaboração eficaz do embaixador Lincoln Gordon.

Neste confronto revolucionário-golpista, só um líder parecia prezar a Democracia e tentava trabalhar por reformas democráticas de cunho social, as Reformas de Base: o presidente João Goulart!

Compôs um ministério impecável, uma Seleção de figuras respeitáveis e reformistas, como San Tiago Dantas, Walter Moreira Sales, Celso Furtado, José Ermírio de Moraes, Eliezer Batista, Almino Afonso, Darcy Ribeiro e o sempre presente Tancredo Neves.

Jango acreditava; parecia o único a acreditar nas Reformas. O tiroteio crescia; o padre deputado mineiro Pedro Vidigal gritou na Câmara: "Armai-vos uns aos outros!" Eu ouvi, estava lá. Perplexo. Meu antigo professor Celso Furtado me disse, discreta mas afirmativamente: "Está muito difícil" Compreendi.

Caiu o Ministério-Seleção e veio outro, e outro... E o tiroteio crescia. Até que o governador mineiro, Magalhães Pinto, percebeu que o golpe era inevitável e se transformaria numa ditadura militar que desprezaria os políticos. Tentou evitar e tomou a iniciativa do golpe político, convocando o general Mourão, a "vaca fardada", numa autodefinição. Acabou mesmo nas mãos dos militares por 20 anos; não houve reação. Líderes da esquerda presos, cassados, exilados, Congresso castrado, classe média apoiando...

João Goulart, ainda presidente, foi a Porto Alegre conversar com o comandante do Terceiro Exército. E ouviu dele o relato militar da realidade. Obedeceriam à ordem de resistência, se o presidente assim determinasse, mas seria uma luta fratricida difícil de vencer. O Brasil se transformaria em sangrento campo de batalha internacional, com grande possibilidade de divisão. Jango ouviu, mediu, pensou nos brasileiros e renunciou, saindo do Brasil.

Pessoalmente, conheci pouco João Goulart. Mas acompanhei-o sempre, com admiração pela sua história de homem simples e líder trabalhista, companheiro autêntico dos trabalhadores em todas as horas, seguidor de Vargas e do projeto de Brasil soberano; democrata convicto e lúcido em busca de reformas pelos trabalhadores. A grandeza do seu projeto de Brasil foi vitimada pela Guerra Fria entre os dois gigantes mundiais.

João Goulart, sem dúvida, é merecedor de um justo e destacado monumento-memorial de sua grandeza em Brasília.

Saturnino Braga é ex-senador e ex-prefeito do Rio

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