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opinião 12 fevereiro 2019 - arte o dia
Rio - Noutro dia, como acontece em quase todos, houve morte a tiros em uma rua carioca. Dessa vez, um assaltante. Foi ali na Passagem esquina com São Manuel, em Botafogo. Troca de balas entre ele e a Polícia já com sol na moleira, mas ainda bem cedinho, antes das 7 da manhã. Quando saí de casa, algumas horas depois, o corpo estava estendido na calçada. E com muita, muita gente gravitando feito mosca de padaria. Nada diferente da rotina da dita “cidade olímpica”, sobretudo no subúrbio e favelas. O que me intrigou foi a forma unânime e compulsiva de referência a ele: “presunto”. Ora, não é de hoje que adaptam a estética da charcutaria a cadáveres (os jornais “espreme-sai-sangue” abusavam da gíria outrora), mas a quantidade de pessoas que abraçou a definição em plena década de 2010, num raio de cerca de dois quilômetros, foi da ordem do surreal.

A senhorinha com semblante dulcíssimo, que molhava a calçada (indiferente à falta d’água já severa no planeta azul que baila no firmamento) e, pasmem!, diante de um centro espírita, soltou: “Cleide, o presunto ainda ‘tá’ lá. Corre para ver!”. Meio minuto antes, um dos porteiros do meu prédio já me alertara: “o presunto tá embalado naquele tipo de papel laminado, bem diante da loja em que o ‘senhor’ consertou seu celular. Acabei de voltar de lá”.

Transeuntes, motoqueiros, motoristas e caronas que davam aquela paradinha, enfim, toda a multidão repetia como mantra: “presunto”, “presunto”, “presunto”. E tome de mais presunto num tipo de “café da manhã” para lá de indigesto àquela altura do campeonato. A estética do açougue depois do tiro parecia alimentar o quadro inacreditável “tá lá um corpo estendido no chão”, em meio ao vaivém da metrópole-balneário. O que pensar?

Bem, parece-me que, enquadrado como “bandido”, o morto vira mais facilmente “presunto” do que... “Morto”, na visão do cidadão comum – muitos, hoje, autodeclarados “de bem”. Mais uma camada em nossa sede de justiçamento à Robespierre, parte do tecido social esgarçado demais na selvageria capitalista da contemporaneidade. Uma vítima de tiro num assalto não é, até que se prove o contrário, um “presunto” imediato. Já um possível criminoso (antes mesmo que haja confissão ou prova de culpa), bem, este vira carne de porco exposta na tela da tevê, no meio desse povo, na mesma hora.

Vamos além: quando se diz – a meu ver, de forma errada – que vivemos, os cariocas, em “estado de guerra", os combatidos, normalmente, têm as seguintes características: pobre, negro, favelado, os desfavorecidos pela lógica oligarca do país – até hoje construído sob o signo das Capitanias Hereditárias. E são estes os presuntos potenciais, muitas vezes enterrados sem nome no jornal (a própria carne sem RG), tampouco selo de procedência, parte das estatísticas que não param de crescer.

A sede por presuntos em meio à nossa “guerra” (declarada violência contra violência) esconde nessa definição que, no meio do caminho, há um país de privilégios a poucos e brancos e que “até” estudaram. E que o crime, antes de tudo, nasce aí, na falha histórico-secular do poder público com a ampla maioria. Este dito “estado de guerra” deveria mudar de nome imediatamente: “estado de divã”. E com regressão. Os complexos reais – e os semânticos –, e que fazem com que até os mais humildes vibrem com presuntos tão próximos às suas realidades, moram todos na construção social elitista brasileira, desde o ancorar das treze naus.

Com relação ao presu..., ops!, da Rua da Passagem, o toque de sanidade veio de um lixeiro, que descera do caminhão para apanhar os sacos plásticos espalhados na via. Certamente, no íntimo, aquela gente toda gostaria que fosse ele a recolher o corpo, jogar no caminhão e fim de festa - sanha inconsciente e inconsequente d’uma sociedade que entronizou o fígado como órgão-rei. Mas ao sabor do milésimo dizer “presunto” foi, justamente, o homem quem teceu a crítica ao panorama da seção “frios e laticínios” do mercadão de carnes baratas a céu aberto:

- “Presunto”... Que forma estranha de se referir a um ser humano, né? Vou procurar no Google o porquê disso.

E a vida seguiu. Até a próxima casta dos defuntos nossos de cada dia.

Fábio Fabato é jornalista

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