Rio - Em 23 de abril de 1616 — há praticamente 400 anos —, houve festa no céu. Com certeza, um grande sarau literário. Naquela data, dois gênios da literatura universal deixaram o nosso mundo, que tão bem retratam em suas obras: o inglês William Shakespeare e o espanhol Miguel de Cervantes.
Shakespeare, nascido em 1564, viveu 51 anos. Cervantes, nascido em 1547, 68. Talvez os dois tenham se admirado com a coincidência de data ao se evadirem dessa Terra tão atribulada e felizes por, afinal, se conhecerem pessoalmente. E exultaram se comungavam a esperança expressada, séculos mais tarde, por Jorge Luis Borges: “Sempre imaginei que o Paraíso fosse uma espécie de biblioteca.” Espero que sim, pois nesse curto período de vida é impossível ler todos os livros que me atraem.
Shakespeare se casou aos 18 anos com a rica Anne Hathaway, de 26, que lhe deu três filhos: Susanna e os gêmeos Hamnet e Judith. Em Londres, trabalhou como ator e escritor. Até 1590, influenciado pelo teatro italiano, escreveu principalmente comédias, como ‘A megera domada’ e ‘A comédia dos erros’.
Cervantes, com sua obra-prima, ‘Dom Quixote de la Mancha’, é considerado o pai do romance moderno. Assim como a obra de Shakespeare consolidou o idioma inglês, a de Cervantes produziu o mesmo efeito no espanhol.
Em 1569, aos 22 anos, Cervantes se refugiou na Itália, após ferir um desafeto com quem duelou. Em 1571, participou da Batalha de Lepanto, quando a esquadra formada por países cristãos derrotou os soldados do Império Otomano, de fé islâmica. Ferido, ficou com a mão esquerda inutilizada.
Ao navegar de Nápoles a Castela, em 1575, foi capturado por corsários argelinos, que o retiveram por cinco anos, até receberem o resgate. Viveu em Lisboa entre 1581 e 1583. De retorno a Castela, casou com Catalina de Salazar, em 1584, aos 37 anos, com quem teve a filha, Isabel. No ano seguinte, publicou seu primeiro romance, ‘A galatea’. Preso em 1597 por dívidas bancárias, durante o ano em que permaneceu no cárcere esboçou ‘Dom Quixote’, cuja primeira parte se editou em 1605 e, a segunda, dez anos depois. Escreveu também novelas, comédias e poemas.
Além da coincidência de falecerem na mesma data, Shakespeare e Cervantes foram mestres no modo de tratar temas políticos com refinado talento artístico e, ao mesmo tempo, dissecar as profundezas da alma humana. Assim como a obra de Shakespeare consolidou o idioma inglês, Cervantes produziu o mesmo efeito no espanhol
Frei Betto é autor do romance ‘Minas do Ouro’ (Rocco)