Rio - Eram cinco e meia da manhã quando policiais militares encontraram A., de 18 anos, deitada em posição fetal na varanda de uma casa no Morro da Mineira, no Estácio. Vestida somente com uma blusa, chamava, chorando, pela mãe. Havia sido estuprada por três homens, um deles, traficante. O caso de A., que buscou ajuda na polícia, é uma exceção em áreas onde há poder paralelo, segundo especialistas. O silêncio imposto pelo medo, associado à naturalização do crime entre algumas vítimas, facilita a impunidade em alguns casos. Há outros em que estupros são praticados por traficantes como forma de punição ou vingança.
“Um deles queria sair comigo, mas eu negava, já o tinha visto armado. Ele me buscou no beco, puxou meus cabelos. Com medo, não reagi. Os outros vieram depois”, afirmou A., em depoimento na 6ª DP (Cidade Nova). A violência sexual ocorreu em 2013, na saída de um baile funk. Três anos depois, o pedido de internação provisória dos acusados não foi acatado pelo juiz. “Esse é um caso que me marcou muito, pois os advogados de defesa tentaram desqualificar a vítima, que já havia se relacionado com traficantes em bailes, o que de maneira alguma a diminui”, afirmou a delegada Valéria Aragão, que na época conduziu o caso. “A. não ofereceu resistência por medo, o que não quer dizer que não houve estupro”, explicou.
Na opinião do coronel da PM reformado Robson Rodrigues, do Instituto Igarapé, este tipo de crime é mais sensível em comunidades do Rio. “O crime de violência sexual contra a mulher é um problema que ocorre em toda a nossa sociedade e não somente em favela com ou sem UPP. Mas ele é ainda mais dramático nesses locais, quando há uma ordem criminosa paralela, seja a milícia ou o tráfico”, disse ele, que atuou na implantação das Unidades de Polícia Pacificadora. “Além de todos os problemas que já enfrentam, ali as mulheres estão muito menos empoderadas”, argumenta. Segundo ele, as denúncias de estupro aumentaram nas regiões pacificadas.
De acordo com a psicóloga Glauce Correa, da Santa Casa de Misericórdia, a vida do tráfico cria uma mística em algumas jovens, e certos tipos de violência passam a ser naturalizados. “Muitas querem o status de ‘namorada de traficante’, fazem orgias para ser aceitas pelo grupo, posam com armas, usam drogas e não possuem base familiar. Há ainda os casos de intimidação, e muitas cedem à violência”, afirmou.
A sexóloga e psicóloga Sandra Baptista acredita que o álcool e as drogas, muitas vezes usadas em festas promovidas por traficantes, podem dificultar a percepção do que seja ou não estupro. “A presença de componentes que anestesiem um sexo grupal consensual pode ganhar cores de estupro, e um estupro pode deixar de ser percebido e, portanto, devidamente denunciado. Isso ocorre tanto em bailes na favela ou no asfalto”, analisa.
A jovem que sofreu estupro coletivo em uma favela da Zona Oeste do Rio contou à polícia que viu mais de 30 homens armados em sua volta. Ao sair da casa conhecida como ‘abatedouro’, viu o chefe do tráfico local. Somente após a divulgação nas redes sociais do vídeo em que aparece nua, sendo tocada e, com apoio de movimentos sociais, ela foi encorajada a registrar a queixa.
Para delegada, ‘código de ética’ não elimina ação de estupradores
Para a titular da DCAV (Delegacia da Criança e Adolescente Vítima), Cristina Bueno, traficantes estupram, mas não admitem que em favela outros cometam o crime. “Muitos dizem que traficantes não estupram. É mentira. O que ocorre é que ele faz, o grupo faz. Mas, para dizer que há um ‘código de ética’, não admitem que outra pessoa faça”, disse.
Em 1983, na Cidade de Deus, quando o crime organizado do tráfico nas favelas ainda estava se expandindo, um caso chocou a opinião pública. Uma jovem de 17 anos, que chegava em casa tarde, foi estuprada por dois traficantes e fuzilada em seguida. O caso comoveu a sociedade, e movimentos feministas também se articularam. Os acusados foram presos e condenados.
O estupro por traficantes também é usado como punição. Em agosto de 2014, oito traficantes estupraram, torturaram e mataram a jovem Larissa Andrade, 17. Moradora de uma comunidade onde o Comando Vermelho atua, ela errou o caminho e entrou em uma favela dominada por uma facção rival.
No final de 2014, Rayssa Sarpi, 18, morreu após uma sessão de tortura e estupro promovida por traficantes. Um vídeo foi feito mostrando parte do crime. O motivo do castigo foi a abordagem de Rayssa a um traficante, acompanhado de outra mulher que teria ficado com ciúmes. A jovem chegou a receber atendimento médico, mas não resistiu.
De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), a cada duas horas, uma mulher é estuprada no Rio de Janeiro. No Tribunal de Justiça, somente em relação a estupro de vulneráveis (menores e deficientes físicos e mentais) no ano de 2015, foram 1.249 sentenças.