Rio - Mistura de ritos de Umbanda, herdados dos escravos, com Santo Daime — manifestação religiosa dos seringueiros do Acre à base de chá de origem indígena, extraído da Ayahuasca, planta com poder enteógeno, que altera a consciência e induz ao êxtase —, a Umbandaime, criada no início dos anos de 1980, vem expandindo e já tem até dissidência: a Daimeumbanda.
As duas vertentes das novas religiões, cujos devotos divergem por discordâncias nos modelos de cerimônias, além de estarem presentes em cultos na maioria das seis igrejas do Rio que servem o Daime, já se alastraram por boa parte dos mais de 5 mil terreiros de Umbanda e Candomblé espalhados pelo estado.
Estima-se que no Rio cerca de duas mil pessoas sigam as duas modalidades, que também já alcançam pelo menos 15 países: Estados Unidos, Peru, Equador, Colômbia, Bolívia, França, Suíça, Espanha, Alemanha, Argentina, México, Portugal e Irlanda, Israel e República Tcheca.
“Essas novas formas de sincretismo religioso são genuinamente brasileiras. Não são religiões importadas como as demais. É uma realidade que avança diariamente”, afirma o sacerdote umbandista e membro da Federação Brasileira de Umbanda (FBU), Marco José Câmara. “Toda iniciativa religiosa para o bem ao próximo é válida”, pondera o babalaô Ivanir dos Santos, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa.
Fundador e líder, também chamado de padrinho, da Igreja Rainha do Mar, em Pedra de Guaratiba, Marco Grace Imperial, de 59 anos, responsável por trazer, em 1983, o primeiro garrafão de Daime da comunidade Cinco Mil, no Acre, para o Rio, de onde sugiram novas igrejas, diz que a ampliação rápida das novas religiões tem infiltrado “aproveitadores da fé”, que chegam a cobrar em torno de R$ 1,5 mil para participações em cerimônias, muitas vezes com duração de até quatro horas.
“Isso acontece em qualquer religião. Mas o propósito do Daime é curar amarguras por meio da prática da caridade nas igrejas, que têm cunho filantrópico. Cobrar para se fazer o bem é contra a nossa essência”, lamenta Marco, que, há cerca de 40 anos, comanda no mínimo dois ritos por mês.
Mãe de santo relata “viagens fora do corpo”
Marco Imperial, que tem como mentor o lendário Sebastião Melo, discípulo de Mestre Irineu, precursores do Daime, é um dos poucos a dar entrevista. “Há ainda preconceito. Sempre relacionam fatos ruins ao Daime ou à Umbanda”, justifica, garantindo que já viu curas de câncer e Aids pelo chá, que tira a acidez do organismo.
Além da Rainha do Mar, também são referências em Umbandaime, as igrejas: Flor da Montanha, em Lumiar; Jardim de Saquarema; Aurora da Vida, em Vargem Grande; Barquinha, em Niterói, e Céu da Montanha, em Visconde de Mauá.
Em vídeo na internet, a mãe de santo Maria Natalina, fundadora da Umbandaime, fala de “transportes espirituais”. Ao som do atabaque, fiéis fazem rodas de ‘giras’, com danças e pontos de Umbanda, aliadas ao consumo e hinários do Santo Daime. “Fazemos viagens astrais, fora do corpo”, diz.
Questão financeira pode despertar a cobiça
A mãe de santo Rosiane Rodrigues, 44 anos, pesquisadora de religiões de matrizes africanas do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (Ineac/UFF), vê com certa desconfiança a questão financeira por trás de movimentos religiosos, que hoje despertam muita cobiça.
“O Brasil é, em tese, um país laico. A formação de novos movimentos religiosos é livre e legítima. No entanto, é preciso considerar que o setor movimenta um percentual significativo do Produto Interno Bruto (cerca de R$ 15 bilhões por ano) e isso vem crescendo muito”, alerta ela.
Marco Imperial esclarece que tem sua própria plantação de cipó Jagube (Banisteriopsis caapi) e folhas da Chacrona (Psychotria viridis), que originam, através da decocção, a Ayahuasca. “Nos rituais nós servimos o Daime de graça”, ressalta Imperial. Devido ao aumento da procura, a colheita dos cipós e das folhas tem sido feita em até seis meses em algumas plantações. Alguns fiéis mais antigos recomendam o consumo somente a partir de oito anos depois do plantio.