Rio - A mulher foi a um baile e deixou os filhos com a vizinha. Ao voltar encontrou bandidos na sua porta. Eles reprovaram a atitude da mãe e rasparam a sua cabeça na rua, sob ameaças. Apesar da humilhação e do medo, a mulher diz em vídeo: “Podem fazer isso. Não vou reclamar”. O assunto provoca polêmica, ao contar com a aprovação de muitos, e desperta o questionamento: que autoridade tem os bandidos para punir alguém nas favelas?.
Há mais de 10 mil vídeos fáceis de serem acessados na internet, que mostram que 20 anos após a promulgação da lei 9.455/97, que pune a tortura, esse tipo de crime ocorre a cada dia mais sem controle no Rio de Janeiro. Moradores de comunidades da capital e Região Metropolitana são submetidos a castigos do ‘tribunal do tráfico’ e viram protagonistas de “filminhos de terror”, viralizados tampém pelo whatsapp. Ao todo, 795 casos de tortura tramitam na Justiça fluminense. Mas atrocidades que ocorrem nos becos, casebres e vielas das comunidades, muitas vezes não têm este desfecho.
Segundo levantamento feito pelo Tribunal de Justiça do Rio, a pedido do DIA, do total de casos de tortura nos últimos dez anos, 402 já tiveram pareceres dos juízes cariocas, com apenas 162 condenações de torturadores e 77 absolvições. Os acusados são ligados ao tráfico, à milícia e à propria policia.
As bárbaras “penitências” são por diversos motivos. Os ‘julgamentos’ dos bandos vão desde reprimendas por roubos de celulares, a supostos envolvimentos do ‘réu’ com facções criminosas inimigas.
Numa das ações recentes, traficantes da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, obrigam uma jovem a segurar, uma folha onde se lê: “Eu tô tomando um salve (surra) do Comando Vermelho”. A justificativa, feita em voz alta pela vítima, era pelo suposto roubo de um celular. Indefesa, estende as mãos, e os criminosos desferem violentos golpes com madeiras, que também atingem seu rosto e suas costas. Ela implora, inutilmente, pelo fim do castigo, gritando que o braço fora quebrado. Mas continua a apanhar sem piedade.
Campanha e condenação a torturadores
O advogado do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, João Tancredo, defende a realização de uma campanha para a não propagação de vídeos de tortura pelas redes sociais e whatsapp. “É preciso também mais condenações de criminosos envolvidos em torturas, principalmente as seguidas de mortes”, apela.
Boa parte dos criminosos que exibe torturas nas favelas do Rio em vídeos, segundo João Tancredo, já tem penas altas, e não está nem aí para nova condenação, de até 8 anos.
Victória Grabois, do Grupo Tortura Nunca Mais, se espanta. “Na ditatura, torturas eram praticados em porões, acobertadas. Hoje é tudo exibido para o mundo inteiro” lamenta. Em nota ao DIA, o Google admite não dar conta de retirar todos os vídeos de torturas do ar. Alega que ao todo são postados 450 horas de filmes, de tudo quanto é tipo de assuntos, por minuto, no mundo inteiro.
‘Reflexo do que a sociedade quer’
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Marcelo Chalréo, diz que o momento atual é “reflexo do que a sociedade quer”. “Há leis e há prisões. Tanto que a população carcerária triplicou em dez anos. O que falta é a sociedade derrubar essa tradição de punição ao estilo ‘olho por olho, dente por dente’”, opina.
“O justiçamento é perverso, vem se perpetuando e afrontando o estado de direito. Punir não é sinônimo de vingança”, endossa o deputado Marcelo Freixo (Psol), da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa.