Rio - Sem valor econômico para os credores da massa falida da Universidade Gama Filho, mas um tesouro da cultura portuguesa, a ‘Biblioteca de Marcello Caetano’, foi entregue ao Real Gabinete Português de Leitura, no Centro. O acervo conta com mais de 30 mil volumes que eram expostos em lugar especial no campus da Piedade nos áureos tempos da universidade. Mas, com o fechamento da Gama Filho em 2014, o patrimônio estava relegado às traças. Os livros foram trazidos como única bagagem por Caetano — o último chefe de governo da ditadura salazarista, derrubada em 1974 pela Revolução dos Cravos — que buscou o exílio no Rio.
No grupo das publicações mais antigas e valiosas, destaque para uma edição de 1731 das ‘Memórias de D. João I’ e para cinco volumes das ‘Ordenações e Leys do Reyno de Portugal confirmadas e estabelecidas por D. João V’. O resgate dos títulos é resultado de uma ‘costura’ judicial alinhavada pelo Tribunal de Justiça que envolveu o presidente de Portugal, Marcelo Sousa — cujo primeiro nome é uma homenagem a Caetano — os administradores da massa falida, o Ministério Público e o Real Gabinete Português de Leitura.
“No processo há laudo que atesta valor econômico irrelevante, mas é uma riqueza cultural que ficará à disposição da sociedade”, afirmou o juiz da 7ª Vara Empresarial, Fernando Viana, responsável pela decisão de cessão do material. Na vara tramita a massa falida da Gama Filho e do Centro Universitário da Cidade (UniverCidade), do Grupo Galileo. “No campus de Madureira da UniverCidade, os livros foram saqueados e trocados por drogas. Então, a preservação do acervo de Marcello Caetano é uma vitória porque poderia ser perdido por não ter valor pecuniário”, enfatizou Cleverson de Lima Neves, um dos três administradores da massa falida.
Segundo Neves, todos os outros livros que integram a biblioteca da Gama Filho estão sendo catalogados e deverão ir a leilão.
Sonho realizado
Um dos mais empenhados na preservação dos livros de Caetano foi o desembargador Luiz Felipe Francisco, da 9ª Câmara Cível. Durante a realização da Olimpíada 2016, o magistrado ouviu do presidente de Portugal, Marcelo Sousa, o desejo de reaver o acervo. Francisco, então, decidiu arregaçar as mangas. Contou com o apoio do então presidente do Tribunal de Justiça, Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, para alinhar os procedimentos judiciais com os representantes portugueses e manter vivo o patrimônio histórico e cultural.
O martelo foi batido só depois que os descendentes de Caetano foram ouvidos. “A família quis que a biblioteca ficasse aqui. Caetano trouxe o acervo para ter oportunidade de lecionar. Conseguiu o emprego na Gama Filho e, em troca, cedeu os livros”, revelou Luiz Felipe Francisco.
Disponível em até 90 dias
O público poderá ter acesso aos títulos em até 90 dias. Esta é a estimativa do presidente do Real Gabinete Português de Leitura, Francisco Gomes da Costa. “São volumes de grande importância que serão desponibilizados entre 60 e 90 dias ao público. Uma empresa vai fazer a higienização e digitalização dos catálogos”, anunciou Costa.
O Real Gabinete reúne a mais completa biblioteca de autores portugueses fora de Portugal com mais de 400 mil obras. A instituição sem fins lucrativos foi fundada em maio de 1837 e é mantida com as contribuições dos sócios. Hoje são 2.400, mas pouco mais de 240, contribuem. Para ser associado, basta fazer a inscrição e pagar mensalidade de R$ 60 que ajuda na sustentação de um dos ícones importantes da cidade.
Antes de ir para as prateleiras que ocupam 300 metros de um novo anexo do Real Gabinete, os livros passarão pelas mãos zelosas de Célia Verônica de Oliveira, 50 anos, Maria de Oliveira, 49, e Maria Fátima de Abreu, 55, que trabalham no setor de encadernação. “Realizamos trabalho manual de manutenção e conservação do acervo”, disse orgulhosa Célia Verônica, funcionária há 25 anos.
Marcello Caetano
Foi diretor do Instituto de Direito Comparado na Gama Filho de 1974 a 1980, quando morreu em 26 de outubro. Político português, autor de livros como ‘As minhas memórias de Salazar’, professor reconhecido como um dos expoente no mundo jurídico, principalmente, na Europa e no Brasil. Caetano nasceu em Lisboa em 17 de agosto de 1906. Fez doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1931. Dois anos depois de ter conhecido Antonio de Oliveira Salazar, entrou na política. Chegou ao Rio em 1974 depois da queda do regime.
Professores
Ex-professores da Gama Filho e UniverCidade comemoraram destino do acervo. Mas muitos não receberam indenizações das instituições do Grupo Galileo, afundado em escândalos de corrupção. “O mau patrão ganha desconto e paga parcelado”, criticou Manoel Marcondes, que trabalhou na Gama Filho entre 2001 e 2004. Rose Figueiredo, que lecionou nas duas instituições, lembrou as agruras. “A cessão dos livros de Caetano é fundamental. Mas os professores e alunos que ficaram à deriva não podem ser esquecidos. Não recebi R$ 180 mil a que tenho direito”.