Rio - Um dos efeitos e também uma das causas da crise na mobilidade, o número de automóveis nas metrópoles do país não para de crescer. Só de 2001 a 2012, a frota brasileira mais que dobrou, passando de 24 milhões para 50 milhões de veículos. E esse movimento não ocorre só no Brasil. De forma geral, é cenário comum nos países emergentes.
Uma nova tendência já começa a ser observada nas nações mais desenvolvidas, no entanto. É a chamada ‘desmotorização’, ou redução do número de veículos por habitante. O termo ainda soa estranho aos ouvidos brasileiros, mas tem sido cada vez mais falado na Europa e nos Estados Unidos como saída para amenizar os problemas de mobilidade nas grandes cidades.
A segunda reportagem da série ‘Tendências dos Transportes’ mostra experiências de cidades do mundo que apostaram nas restrições ao veículo particular e no incentivo ao uso do transporte público para se alcançar uma mobilidade urbana melhor. Segundo estimativas do Lepac (Laboratório Francês de Estudos Prospectivos e Cartográficos), havia 360 milhões de automóveis em todo o mundo em 1980. “Daqui a 20 anos, haverá a mesma quantidade só na China”, prevê o cientista social e chefe do Lepac, Jean-Christophe Victor, no relatório “Tendências do Transporte Público”, editado em 2015 pela União Internacional dos Transportes Públicos (UITP) — principal entidade global de estudos sobre o setor.
Para reverter essa explosão do número de veículos, que prejudica a mobilidade nas grandes cidades do país, Clarisse Linke, diretora do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) no Brasil, avalia que só melhorar a infraestrutura de transporte público não é suficiente. É preciso criar restrições para o uso do automóvel. “Precisamos de políticas que pesem no bolso do usuário do transporte individual e o empurrem para longe do carro”, opina. Ela se baseia em experiências de países desenvolvidos que, por exemplo, cobram pedágio urbano — imposto para andar de carro nos centros urbanos. “É o caso de cidades como Londres, Cingapura e Estocolmo”, cita Clarisse.
Em entrevista ao DIA, em janeiro, o secretário municipal de Transportes, Rafael Picciani, disse ser a favor da taxação de donos de automóveis como forma de desestimular o uso do carro e financiar o transporte público, mas não no momento econômico atual. “Se o estado estivesse em um momento econômico positivo, eu deixaria isso como proposta ao governo Eduardo Paes”, afirmou.
Nova geração não sonha com o carro
O relatório da UITP traz uma perspectiva positiva para as futuras gerações quando o tema é desmotorização. O documento aponta que diferentes estudos realizados no Japão, na América do Norte e na Europa mostram que os jovens de cidades desenvolvidas estão menos propensos a comprar carros ou até mesmo a tirar carteira de habilitação. Por que será?
Diretora de Mobilidade Urbana da Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), Richele Cabral acredita em duas razões. Uma delas é que os países desenvolvidos contam com redes de transporte público mais eficientes e integradas. “As pessoas têm opões para chegar a todos os cantos da cidade, deixando para usar o automóvel apenas para o lazer ou para complementar a viagem”, ressalta ela, que é pesquisadora do assunto.
O outro motivo, apontado por Richele, é curioso: esta é a primeira geração que está crescendo em um mundo dominado pela internet móvel. “Os jovens da Alemanha, por exemplo, estão preferindo usar o transporte público principalmente por causa da tecnologia. Eles querem viajar conectados, usando a internet ou fazendo outra coisa que não poderiam se estivessem dirigindo.”
Experiência de Londres foi positiva
A cidade de Londres, no Reino Unido, implantou em 2003 a taxa para andar de carro na região central da cidade, chamada ‘congestion charge’. Para trafegar nas zonas de tarifação, de segunda a sexta-feira, das 7h às 18h, o motorista paga 11,50 libras por dia (equivalente a R$ 66,53). O pagamento pode ser feito pela internet, telefone, em postos de atendimento, até a meia-noite daquele dia. Existe ainda a opção de realizar pagamentos adiantados, de três meses a um ano.
Dez anos depois de lançar a taxa, A Transport for London, operadora dos transportes locais, divulgou um crescimento de 59,7% nas viagens de ônibus, 42% em modais sobre trilhos e 66% no uso de bicicletas em relação a 2002. A circulação de carros no centro caiu 21%. Centenas de câmeras conferem se o dono do automóvel pagou ou não a taxa. Caso não tenha pago, a multa pode chegar a 17 vezes o valor do imposto: 195 libras (ou R$ 1.129,76). Outra vantagem é que a arrecadação é destinada a investimentos em expansão das redes de transporte público.
A ideia original de criar pedágio urbano foi de Cingapura. A rica cidade-estado localizada em território malásio lançou a medida em 1975, para cobrança nos horários das 7h30 às 19h30, também de segunda a sexta. Estudos apontam que o trânsito foi reduzido em 47% no período matutino e de 34% à tarde. A procura pelo transporte público cresceu 63% e o uso do carro caiu 22%. As emissões de poluentes nas cidades que possuem pedágio urbano também sofreram quedas significativas.
OUTROS EXEMPLOS
?SEM TAXAS EXTRAS
Los Angeles, na Califórnia, nos Estados Unidos, incentiva a carona solidária desde os anos 60, quando instalou faixas para automóveis com pelo menos dois ocupantes. Carros elétricos e alguns híbridos também podem acessar a faixa. Esses corredores recebem 1,3 mil veículos por hora, enquanto pelas normais passam 1,8 mil em média. Quem desrespeita é multado.
PREFERÊNCIA
No Reino Unido, além de faixas exclusivas como no Rio e em outras cidades do Brasil, os ônibus têm prioridade semafórica. Funciona assim: se o sinal estiver quase fechando e identificar um coletivo se aproximando, ele fica aberto por mais tempo. Segundo a RAC, instituição de pesquisa de transporte de Londres, dos mais de 6 mil semáforos inteligentes que a capital britânica possuía em 2008, 3.200 eram programados para dar prioridade ao transporte público. Curitiba tem sistema similar no Brasil.
INTEGRAÇÃO
Brisbane, capital do estado australiano de Queensland, investe no modelo “Park and Ride” (Estacione e Pedale). O conceito é construir estacionamentos próximos a estações de trem,m metrô e ônibus. A medida traz dois benefícios: o motorista não precisa andar de casa até o transporte público e evita congestionamentos nos centros comerciais. Sem contar que o dono do automóvel não precisa pagar altos preços de estacionamento.
SUBSÍDIO CRUZADO
O diretor do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte, Nazareno Afonso, sugere que impostos como a Cide, cobrada na gasolina, e o IPVA, dos proprietários de carros, sejam usados para subsidiar investimentos em transporte coletivo ou ciclovias.
Amanhã: Tecnologia nos transportes