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Por Gabriel Chalita Professor e escritor

'Sempre há um relógio.' Foi a frase que Lucas ouviu quando visitara uma tia, que vivia em um asilo.

Lucas andava envolto em pensamentos pouco felizes. Vivia às turras com o tempo. Parece que a beleza ia se despedindo dia a dia. Sempre fora muito vaidoso. Corpo perfeito. Cabelos impecavelmente arranjados. Olhos pidonhos de reciprocidade. Era um sedutor, o tal do Lucas. Bastava se interessar e ajustava o olhar e o exibir e o dizer galante na ânsia da conquista. Obtido o sucesso, vinha o cansaço. Era preciso novamente buscar outra presa. E, de sedução em sedução, o jovem ia usando seus dias. E as pessoas pelas quais se interessava.

Amores duradouros não o animavam. Relações sempre efêmeras. Ria quando um amigo dizia que ele era campeão de 100 metros. Prostrava-se, se necessário fosse, para envolver. Depois abria uma gaveta de dizeres prontos para justificar sua partida. Enganava. Mentia. Dizia "eu te amo" como quem diz "bom-dia". Um "bom-dia" não causa danos; um "eu te amo" pode ser demolidor. Preocupava-se pouco com o outro e os seus sentimentos. Era sobre ele mesmo o seu repertório escolhido. Mesmo em conversas, preferia fitar-se em algum espelho. Sua imagem o agradava. Ou não. Havia tanta necessidade de conquistar, de seduzir, de se compreender belo que a beleza não parecia suficiente para o seu próprio contentamento.

"Sempre há um relógio", dizia Eunice, a tia.

"Estou ouvindo o barulho", concordava Lucas, olhando em um espelho e reparando no cabelo que já ia se rarefazendo.

"Você gosta de espelho, não é?"

Lucas fingiu não ouvir a frase da tia.

"Eu também gostava".

O silêncio entre eles deu espaço a pensamentos.

"Perdi a única coisa que eu tinha, a juventude."

"Todos perderemos". Concordou Lucas.

"Não. Há outras conquistas. Conquistas que permanecem. Vidas significativas. Ah, não me esforcei para construir nada".

Lucas apenas pensava. Olhava para a tia. E olhava novamente para o espelho. Estava preocupado com os cabelos. E reparava que algumas rugas começavam a se engraçar.

"Pense nisso, Lucas. Você ainda tem tempo de ir além da sua beleza".

"Imagine, tia. Eu nunca fui bonito", disse sem acreditar no que dizia e sabendo que ela também não acreditaria.

Sua vida de sedutor, de pescador errático de histórias que nada representariam, de dispensador de vidas, que depois de conquistadas passavam a ser invisíveis, não o realizava.

Olhava para o irmão, cioso de sua escolha amorosa e profissional e o reprovava. Considerava-o fraco. Sempre com o mesmo amor. Rotina que ele não tolerava. Se se cansava de alguém, que culpa tinha? Que culpa tinha se as pessoas deixavam de ser interessantes? Que culpa tinha se outras histórias surgiam em seu caminho?

"Sempre há um relógio", disse a tia mais uma vez. E seguiu explicando que o tempo não nos dá ouvidos. Que podemos pedir e até implorar para que nos deixe sorver com mais vagar nossa juventude.

Um novo silêncio e novos pensamentos.

Perto do espelho que tanto recebia o olhar de Lucas, uma senhora lia, com olhos de entusiasmo, um romance. Vez ou outra trazia o livro ao peito e abraçava as suas memórias. Eunice a conhecia bem. Dona de uma sabedoria invejável, cultivava as belezas da alma. Era o outro a sua preocupação, o seu cuidado. Dos tempos das enfermarias, guardava lindas memórias. Conta como foi trabalhar em hospitais em regiões de guerra. Lembra de nomes e de despedidas. Uma vida intensa oferecida ao outro. Não tem o costume de se olhar no espelho, prefere ler livros ou prestar atenção às pessoas. O tique-taque do relógio não a incomoda. Sabe que ele está lá. Sempre estará, mas prefere apenas viver.

Lucas se despede da tia e nem repara na senhora ao lado. Tem um encontro logo depois. Faz um esforço para se lembrar do nome do novo amor. Mentalmente, vai dizendo alguns. Não. Esses já passaram.

Não tardaria para chegar o anoitecer.

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