Por SELECT ART

O projeto Voz Ativa: Biblioteca Social, da artista Mariana Lanari, com curadoria de Marília Loureiro, traz novamente para uso público a biblioteca da Casa do Povo, que estava fechada há mais de quarenta anos. Esta primeira reativação, no entanto, não segue os parâmetros convencionais de livros sobre estantes, classificados em temas e em ordem alfabética. Na grande sala no segundo andar da Casa, foi demarcado um mapa do bairro do Bom Retiro e os livros foram dispostos diretamente sobre o chão, dentro dos blocos, formando uma biblioteca horizontal. As possíveis categorias e classificações são o resultado da interação do público com esse material e algumas cadeiras com microfones ficam disponíveis para leituras públicas, que são gravadas e editadas pela artista.

Voz Ativa: Biblioteca Social (2019) de Mariana Lanari (Foto: Carol Quintanilha)

Mariana Lanari já trabalhou como editora de diversas publicações, além de atuações pontuais em outras posições no meio de arte, como curadora. Desde 2010, vem desenvolvendo sua pesquisa como artista trabalhando com bibliotecas e livros enquanto ambientes e paisagens. “A residência que realizei no Capacete foi marcante em minha formação pelo modelo crítico em relação ao sistema de arte e ao produtivismo que muitas vezes esse sistema exige”, conta a artista à seLecT. “No fundo, meus trabalhos são quase imateriais, porque o que importa é a presença, a leitura e as relações das pessoas com um determinado contexto”.

A biblioteca da Casa do Povo foi formada por doações das pessoas do bairro. Há livros em diversas línguas, tanto em alfabeto iídiche quanto latino, sobre as mais diversas áreas do conhecimento. Ao sobrepor este material ao mapa da região, o projeto de Lanari devolve a biblioteca do bairro para o próprio bairro, levantando múltiplas histórias e conexões com o presente. “Os temas não têm relações diretas com o Bom Retiro, então essa associação da biblioteca com o mapa abre uma série de possibilidades de significados novos. Um dos visitantes criou uma seleção de livros baseada na ideia de morte, outro de ficção, assim por diante. Essas escolhas também estão sendo mapeadas”, comenta Lanari. “A ideia de trabalhar com a história e o contexto de uma biblioteca é recorrente na minha pesquisa, mas não é possível replicar o mesmo procedimento diretamente em outro lugar, pois cada um tem suas especificidades. Bibliotecas, no fundo, não são universais”, complementa. 

Mapa do projeto Voz Ativa: Biblioteca Social (2019) de Mariana Lanari (Foto: Cortesia da artista)

Leitura como ato físico

Ao apoiar os livros diretamente sobre o chão, há uma mudança de perspectiva, assim como ao caminhar sobre o mapa, há uma mudança de escala em relação ao bairro, gerando um diálogo entre interior e exterior da instituição, seu passado, sua atuação no presente e possibilidades futuras. Lanari lida com características formais, históricas e dos usos sociais das bibliotecas que está trabalhando, fazendo da leitura um ato físico, em que o movimento do corpo é fundamental.

Voz Ativa: Biblioteca Social (2019) de Mariana Lanari (Foto: Carol Quintanilha)

“Houve a confluência de uma nova demanda, uma abertura para propostas e o projeto da Mariana, cujo trabalho já lida com histórias e bibliotecas”, diz a curadora Marília Loureiro. “Nós estávamos pensando nas formas de reativar esse material de modo que isso fosse um arquivo e uma memória vivos, porque tudo que é realizado aqui busca repensar suas plataformas: O que é uma cozinha, uma biblioteca, uma exposição?”. 

Entre uma residência da artista – que está presente durante todo o período da exposição coletando e mixando as gravações do público –, uma performance de longa duração, uma instalação e uma biblioteca propriamente, Voz Ativa: Biblioteca Social parte de um procedimento simples que abre uma série de leituras, possibilidades e relações entre a casa, a artista e, principalmente, o público. 

A artista Mariana Lanari na exposição Voz Ativa: Biblioteca Social (Foto: Carol Quintanilha)

Ainda não se tem definido qual vai ser o modo de funcionamento da biblioteca. “Tudo na casa é feito em adaptação e, de algum modo, colaboração com o público. Buscamos entender as demandas para definir as regras de funcionamento, em um processo de negociação que funciona com base em uma tecnologia de co-responsabilização”, complementa Loureiro.

A Casa do Povo foi fundada há mais de 50 anos como um espaço de cultura no qual estavam congregadas diversas frentes de atuação, como educação e discussão política. Reinaugurada há cerca de cinco anos, a programação do espaço conta com a convivência cotidiana de coletivos, palestras, exposições, aulas, grupos de estudos, residências e uma grande abertura para as demandas da comunidade local. “O espaço surgiu da comunidade judaica, mas sempre teve uma atuação laica. A história desse lugar é inerente ao bairro e às diversas comunidades de imigrantes que moram aqui. Agora, por exemplo, acabamos de acolher uma proposta de um coletivo de mulheres coreanas sobre feminismo. A preocupação em fazer da casa um lugar do bairro, onde as pessoas se sintam acolhidas, é parte de uma preocupação mais ampla de fazer da memória um lugar de ação e resistência” diz a curadora. 

Ao abrigar este projeto, a Casa do Povo reafirma que sua programação é completamente formada, informada e destinada para as pessoas daquele lugar, colocando o capital humano e social como um dos valores centrais da instituição.

Voz Ativa: Biblioteca Social (2019) de Mariana Lanari (Foto: Carol Quintanilha)

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