Por SELECT ART

É vasta a representação da cultura nacional na obra de Bárbara Wagner (natural de Brasília) e Benjamin de Burca (nascido em Munique, na Alemanha), que atuam juntos desde 2013. Dos filmes que fizeram nos últimos seis anos, metade se debruça sobre ritmos musicais emblemáticos do Brasil, em especial do Nordeste e, mais especificamente, do Recife. “Não conheço um Brasil que não seja negro e não binário. Esse é o Brasil que a gente conhece desde que trabalha aqui”, diz Bárbara Wagner, sobre a obra que preparou com Benjamin de Burca para apresentar no pavilhão brasileiro da 58ª Bienal de Veneza. “É muito mais do que um sentido do exótico ou do que surfar nos assuntos do momento. O frevo, o brega, o evangélico e a swingueira – o Brasil que a gente conhece – é esse Brasil negro e não binário.”

A produção da dupla é sempre feita em colaboração com outros artistas vindos de diferentes circuitos, afirmações estéticas e mercados. Esses artistas foram convidados pela seLecT a descrever seus processos de atuação coletiva com Wagner e De Burca em filmes sobre ritmos musicais.

Swingueira
O mais recente filme da dupla é Swinguerra (2019), que une em seu título o ritmo swingueira e a palavra guerra, atentando para a relação de resistência dos grupos dançarinos e também para as competições de dança das quais costumam participar. De caráter instalativo, é esse o trabalho que representa o Brasil no pavilhão nacional na 58ª Bienal de Veneza, a convite de Gabriel Pérez-Barreiro, curador da 33ª Bienal de São Paulo.

Tudo começou com o pontapé inicial de Tchanna, que dançou no primeiro desses filmes da dupla, Faz Que Vai (2015), e apresentou Wagner e De Burca ao grupo Extremo, do qual participa. A partir dele, a dupla conheceu também os grupos La Mafia e Passinho do Maloka. Os três grupos protagonizam o filme, cada qual com suas particularidades. Enquanto o Extremo ensaia semanalmente coreografias para competir em batalhas de swingueira em quadras esportivas, o La Mafia foca no brega funk e o Passinho do Maloka dança especificamente para o contexto do Instagram. Tchanna conta que na primeira colaboração com a dupla de artistas ainda estava acanhada para opinar e fazer sugestões, mas que a situação mudou em Swinguerra. “Perguntavam o que a gente achava, sobre figurino, a música que a gente queria dançar… Sempre ficamos à vontade para usar o que queríamos usar, pra não ficar uma coisa forçada. Eles queriam sempre que a cena ficasse o mais natural possível. A gente opinou do começo ao fim, em tudo”, conta a dançarina Tchanna.

O trabalho foi filmado na escola pública Atenção Integral à Criança e ao Adolescente – CAIC, em Peixinhos, Olinda. O complexo foi desenvolvido nos anos 1990 pelo arquiteto João Filgueiras, o Lelé, como uma resposta brasileira a projetos realizados por Oscar Niemeyer, nos EUA. Com o complexo arquitetônico em estado de ruína como pano de fundo para a dança, a dupla fala sobre o sucateamento de um projeto de gestão pública e de educação, em oposição ao vigor colaborativo entre jovens com forte expressão artística. “A gente tá representando o Brasil com o nosso nome, mas o que está lá é um filme feito em colaboração. E na verdade isso é mais representativo do Brasil do que o nosso nome”, diz Bárbara Wagner à seLecT.

Frevo
Faz Que Vai (2015) é um videoensaio que mostra os quatro bailarinos – Ryan, Edson, Bhrunno e Tchanna – articulando relações entre frevo, funk, vogue, stiletto e swingueira. O passo de frevo, “faz que vai, mas não vai”, nomeia o filme.

Edson Vogue conheceu Wagner e De Burca em encontros do grupo Guerreiros do Passo, no bairro Hipódromo, no Recife. Seu nome artístico incorpora o ritmo a que se dedica, o vogue, dança caracterizada pela imitação e estilização de poses de modelos, surgida em bailes do Harlem, em NY, nos anos 1960, e disseminada mundo afora. “O processo de trabalho começou com uma pesquisa sobre a vida das personagens”, conta Vogue à seLecT. Em sua obra audiovisual, a dupla frequentemente escolhe deixar transparecer a vida de seus protagonistas. A palavra personagem quase poderia ser substituída por pessoa, já que personagem poderia prever uma construção ficcional. Mas é justamente nos limites entre ficção, construção e realidade que operam Wagner e De Burca. Seus roteiros têm tanto de ficcionalização quanto de fatos. A relação entre o frevo e o vogue é uma investigação pessoal de Edson, impulsionada pelo seu interesse na cantora Madonna, que contribuiu com a divulgação da dança nos anos 1990. “Frevogue é minha pesquisa em andamento sobre os processos históricos e as interseções que estão impressas no corpo do passista de frevo e do voguing a partir das relações de pretitude”, diz o bailarino.

Eduarda Lemos, conhecida como Tchanna, uniu em Faz Que Vai o funk e o frevo, que dança desde os 6 anos de idade. “Eu superadorei a ideia, ainda mais pela valorização do frevo”, conta Tchanna. Em 2012, o frevo foi incluído na lista de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco. “Quando vi o filme, nem acreditei que era capaz de fazer algo tão grandioso com uma coisa que sempre fiz na minha vida, e que, aqui onde eu moro, não é tão valorizado, só no Carnaval”, diz.

Brega
Um ano depois de Faz Que Vai, Wagner e De Burca desviaram as atenções para a paisagem social e profissional do gênero brega, também no Recife, a partir da dupla jornada dos músicos MC Porck, cantor e cabeleireiro, e Dayana Paixão, que havia recém-finalizado seu curso de bombeira. “Até então, a história do filme seria outra. Fizemos uma espécie de laboratório para conversar e Bárbara meio que se encantou pela minha história. Ela achou muito diferente porque eu tinha duas profissões na época e estava bem dividida entre elas”, conta Paixão à seLecT. A cantora, que hoje se dedica ao Arrocha – gênero musical originário da Bahia que mescla música brega, estilo romântico, axé e forró – define sinteticamente Estás Vendo Coisas (2016) como um filme sobre sua história e a de Porck. “Quando eles estavam editando, me mandavam algumas cenas. Mas, quando assisti ao filme todo, chorei horrores. Eu nunca tinha me visto numa tela de cinema. Aí pirei o cabeção.”

Comissionado pela 32ª Bienal de São Paulo, o trabalho acompanha as diversas etapas da produção de músicas do gênero brega, como a escolha de figurino e maquiagem, a gravação de clipes, a apresentação em boates e as entrevistas em programas de auditório na tevê. “Eles realmente mostraram a identidade do brega”, acredita Paixão. A cantora conta que o processo de produção do filme foi bem participativo, que a todo tempo eram motivados a opinar e fazer sugestões. “Tem uma parte em que eu apareço com cabelo liso, porque tava querendo representar um perfil de cantora de brega que é muito comum aqui, que é a ‘cantorinha’ de cabelo lisinho, paradinha”, ironiza. No desfecho do trabalho, quando Dayana Paixão e MC Porck estão juntos no palco de uma boate, o filme encena a escolha de cada um dos artistas por uma de suas profissões. Enquanto Porck permanece no palco, Paixão sai ao ar livre, sobe em um caminhão de bombeiro e sorri, pela primeira vez no filme inteiro, sinalizando sua preferência. Mas a cantora reconhece que hoje sua escolha seria outra: ela permaneceria no palco.

Depois do lançamento de Estás Vendo Coisas, apresentado em festivais de cinema e na 32ª Bienal, a carreira musical de Dayana Paixão deu uma guinada. “Eu tinha uma mídia local e passei a ter uma mídia maior no Brasil. Muita gente começou a me seguir pelo filme e a gostar do meu trabalho. Uma das razões que me fizeram resolver mudar de segmento é que o Arrocha é mais nacional”, conta Paixão.

Gospel
O filme Terremoto Santo (2017) conseguiu levantar críticas bastante contraditórias a respeito de como aparecem os cantores de música gospel da igreja pentecostal Assembleia de Deus, da Zona da Mata de Pernambuco. Alguns reclamam que o trabalho glorifica os evangélicos, enquanto outros se incomodam por achar que ele ofende os religiosos. O principal alvo das considerações foi a cena em que Tacy Silva canta Terremoto Santo, uma música que apresenta o louvor como forma de libertação e que intitula o filme. Quando a canção atinge um clímax, a câmera assume uma linguagem tremida, em diálogo com a letra da música. “Achei bem interessante porque tem tudo a ver com a canção e, principalmente, por acontecer no ápice da música, naquela tensão”, relata Silva à seLecT. Como lhe foi dada a chance de escolher a música do filme, a cantora decidiu apresentar Terremoto Santo, composição de seu amigo Cícero Eraldo que Silva estava gravando para seu primeiro CD.

“Acho que todos esses filmes imprimem uma honestidade muito grande entre a câmera que está observando e a pessoa que está performando. É olho no olho mesmo”, afirma à seLecT Pedro Sotero, responsável pela direção de arte de todos os filmes de Wagner e De Burca e quem estava com a câmera na mão no momento da tremedeira. “Por ser um filme com e não sobre, existe poder dos dois lados. É um diálogo. Não é uma análise”, diz Sotero.

O filme descortina uma série de apresentações musicais, com cenários que passam por paisagens bucólicas e chegam a um estúdio de rádio. Sua narrativa ambivalente serve de estopim tanto para leituras críticas sobre o universo da igreja evangélica quanto para a desconstrução de preconceitos a respeito da religião. “Ver o filme por completo nos dá uma sensação de gratidão e alegria por ter alcançado tal objetivo, que foi o de conseguir trazer para o cinema (ou o meio artístico) uma abordagem diferente daquela que as pessoas estão acostumadas a ver”, reflete Tacy Silva.

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