Por SELECT ART

Armazém, projeto idealizado em 2011 em Florianópolis (SC) pela artista, curadora, professora e pesquisadora Juliana Crispe, alcança boa amplitude dentro do sistema de arte de Santa Catarina. Ao associar exposições e feiras organizadas a partir de avaliação seletiva, convidados e obras do acervo, a iniciativa investiga relações entre publicação de artista, o múltiplo, arquivo e coleção. Movente, a proposta ajuda a regular o fluxo de mercadorias, propõe a circulação e a comercialização de trabalhos de arte que sejam múltiplos, de pequenas e grandes tiragens. As ações abarcam diferentes montagens e reflexões, agregam pesquisa, práticas de gestão coletiva e cooperativada, compromisso comunitário, noções de lugar, cultura e identidade.

Atividade de encontro entre mulheres que estimulou discussões sobre maternidade, educação sexual e empoderamento feminino (Foto: Juliana Crispe)

Em 2016, o Armazém instala-se numa casa no bairro Sambaqui, lugar que ajuda a alargar suas ressonâncias e interesses. Cria-se o Espaço Cultural Armazém – Coletivo Elza, que agrega mulheres preocupadas em associar vozes e luta, arte e feminismo. Voltado ao fortalecimento de questões femininas a partir de ações artísticas e culturais, o espaço desenvolve atividades socioeducativas com dinâmicas vinculadas aos ateliês, nos quais ocorrem orientação artística, oficinas e cursos; feiras, rodas de conversas, bazares, palestras e eventos. Outro compromisso é manter parcerias e diálogos com instituições interessadas na promoção da construção de pensamento por meio de seminários, encontros de artista, mesas-redondas e debates.

Inicialmente instalado na Rodovia Gilson da Costa Xavier, 942, desloca-se em 2018 para o número 1.384 da mesma rua, no bairro Sambaqui. A nova casa qualifica as relações com a comunidade e facilita a execução da parte final do projeto legitimado pelo Prêmio Edital Elisabete Anderle 2017, concedido pelo governo do estado de Santa Catarina para catalogar o acervo e criar um site capaz de atender ao desejo de democratização das demandas de pesquisa em torno da coleção Armazém, hoje composta de mais de mil trabalhos de artistas como Cildo Meirelles, Leonilson (1957-1993), Rosângela Rennó, Guto Lacaz, William Kentridge, John Cage (1912-1992), Yoko Ono, Hélio Oiticica (1937-1980), Joseph Beuys (1921-1986), Arnaldo Antunes, Tunga (1952-2016), Waltercio Caldas e Marcel Broodthaers (1924-1976).

O educativo em ação (Foto: Duda Desrosiers)

Resistência

O acervo abre-se para diferentes leituras, desdobradas sob o manto da política, do feminismo, das linguagens e movimentos artísticos, do meio ambiente e dos polos geográficos. Entre elas, inclui-se don’t touch, performance de Le Bafon apresentada em 2018, no 16º Projeto Armazém – O Mundo como Armazém. O corpo nu feminino, transformado em aderência plena da frase don’t touch it’s art, condensa representatividade pelo seu teor político. Por meio de um carimbo, pés, mãos, virilha, braços, barriga, púbis, rosto, costas e ventre são tatuados. O corpo é devassado diante de um público atento, com crianças acompanhadas de pais, apesar de um estranho comunicado na porta, no qual se lê o alerta sobre a intervenção que inclui nudez artística. O aviso dá-se no fluxo dos impasses de La Bête, de Wagner Schwartz, no 35° Panorama de Arte Brasileira do MAM-SP, quando o movimento de direita usa a obra para produzir fake news, grande histeria no País e acirradas discussões em amplo espectro social, artístico, jurídico e institucional. Assim, Le Bafon guarda-se como ato de resistência num momento dramático da vida e da cultura brasileira.

As poéticas que transitam entre as questões de gênero estão em destaque no Espaço Cultural Armazém – Coletivo Elza. No seu papel de problematizar a realidade, muitos artistas se situam no ativismo, prática e conceito ainda instáveis para ações concebidas como estratagemas artísticos. Nessa perspectiva, algumas obras têm discursos explícitos, outras tangenciam a abordagem pelo gesto, na fatura do bordado, do desenho, da gravura ou da cerâmica.

Tombada pelo Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf) e pelo Serviço do Patrimônio Histórico Artístico e Natural (Sephan) dentro dos conjuntos históricos da antiga freguesia de Santo Antônio de Lisboa e da Praia das Flores, no Sambaqui, a nova sede do espaço integra a paisagem cultural como um dos elementos representativos da arquitetura residencial remanescente luso-brasileira colonial do século 19. Presta-se, portanto, à promoção da identidade local e da memória urbana de Florianópolis, fatores que potencializam os interesses do projeto.

Em destaque por sua beleza, a casa testemunha o projeto com característica multidisciplinar e particularidades assentadas na crença da potência de ações colaborativas no campo das artes visuais. Nela, o coletivo reafirma-se como força pulsante, sem fins lucrativos, independente, regida pelo convívio e afeto. A atuação dá-se na urgência do existir, nas dificuldades, na busca de empoderamento feminino.

O Coletivo envolve 20 profissionais – artistas, gestoras, educadoras, doulas, psicólogas e propositoras – e abriga sete ateliês, uma sala expositiva com agenda anual, uma biblioteca especializada em temas feministas, um programa de residência de artistas, um coletivo de pesquisa – o Projeto Armazém –, dois grupos de potencializadoras de projetos, um voltado à pró-infância, empoderamento e perinatalidade, e outro que se denomina Fora do Eixo Florianópolis. O programa de residência desenvolve o Residência Anual, Residência para Pesquisa e Intercambiável Floripa.SP. Esse último seleciona uma artista de Santa Catarina para morar um mês na Casinha#3, em São Paulo, e uma artista da capital paulista para vir a Florianópolis.

Idealizado como um grande encontro entre artistas, coletivos, editoras independentes e público, o Armazém reúne obras como publicações de artista, livros de artista, cadernos de artista, cadernos de desenho, diários de artista, diários de bordo, postais, panfletos, cartazes, gravuras, fanzines, lambe-lambes, stickers, cartões, carimbos, objetos etc. Pela localização geográfica, fora da região central da capital catarinense, num estado sulino cuja produção artística é quase invisível no circuito de arte brasileira, pelo modo de articulação humana, baseada em práticas coletivas, em memória e ativismo, o Espaço Cultural Armazém – Coletivo Elza desprende-se de convergências hegemônicas, adota um caminho particular, conduz-se como uma operação crítica, de desterritorialização, política, portanto.

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