Por SELECT ART

A exposição Ka’rãi, de Dora Longo Bahia, sugere que existe, nas violências de Estado em ação no Brasil de agora, ecos de violências passadas, cometidas aqui ou em outras partes. Embora não busque estabelecer relações causais entre fatos espacial e temporalmente afastados, apresenta-os como exemplos da reincidência da vontade de aniquilar o diferente e de afirmar desigualdades abissais. Violências que, no limite, instituem uma política que visa a produção da morte do outro. Antes e agora; longe e aqui perto.

Paraíso – Consolação (projeto para a Avenida Paulista) (2019) de Dora Longo Bahia (Foto: Divulgação)

Logo na entrada da exposição, o visitante é confrontado com dois pares de cartelas de cupons de racionamento, típicas de períodos de privação material devido a conflitos bélicos [O condor e o carcará]. Em cada par, uma das cartelas é verdadeira, enquanto a outra foi produzida pela artista. As originais são oriundas da Guerra Civil Espanhola, trazendo em suas faces ilustrações referentes à aliança nazi-fascista então celebrada para aniquilação dos republicanos espanhóis. Referência feita, em particular, à Legião Condor, agrupamento aéreo militar responsável pelo devastador bombardeio de Guernica, em 1937. As outras duas cartelas, criadas por Dora Longo Bahia, estampam em suas faces versões alteradas daqueles desenhos, sugerindo, na comparação entre imagens, as implicações destrutivas das políticas postas em marcha pelo atual presidente brasileiro e seu ministro da justiça. No verso das cartelas espanholas, os cupons exibem o quanto valem como instrumentos de troca por bens ou serviços. Já no das cartelas inventadas, os cupons indicam o quanto supostamente valem – por simbolizarem força política e poder de polícia – como instrumentos feitos para consumir (anular/apagar/abater/destruir) aqueles tidos, pelo Governo do Brasil, como seus adversários.

Fuga (Sujeito) (2019) de Dora Longo Bahia (Foto: Reprodução)

No trabalho em maior destaque na mostra [Fuga (Terceira voz)], é proposta uma relação entre aquela aliança destrutiva que ancorava a Legião Condor e uma outra feita, nas décadas de 1970 e 1980, entre os Estados Unidos e regimes militares vigentes em países da América do Sul (Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil). Aliança estabelecida para eliminar, fisicamente, os oponentes políticos daquelas ditaduras e batizada, justamente, de Operação Condor – referência a pássaro implacável com suas presas avistadas desde o alto e que também se alimenta de restos de animais já encontrados mortos. Em algumas regiões do Brasil, o condor é chamado de carcará, nome originado da palavra ka’rãi, que em Tupi significa, apropriadamente, arranhar ou rasgar. O trabalho é composto por uma série de seis grandes pinturas verticais que, de imediato, remetem à tradição do abstracionismo informal. Abstrações que, contudo, velam, nos versos das telas, outras pinturas, cada uma delas retratando uma mulher sul-americana com uma criança nos braços e pernas ausentes, metaforicamente arrancadas de seus corpos. Essas pinturas – feitas a partir de fotografias pesquisadas pela artista – somente podem ser vistas através dos visores dos celulares dos visitantes da mostra, uma vez que sigam as instruções de instalar, neles, aplicativo que traduz traços vagos em retratos. Retratos de mulheres que, como informa o mesmo dispositivo, foram vitimadas por aquele acordo de destruição e apagamento histórico de corpos desviantes e dissidentes que uniu governos ditatoriais diversos décadas atrás. Uma política de fazer morrer que hoje se inscreve na sociedade brasileira e em outros países da região de várias outras maneiras, inclusive pela desatenção de governos a falas e atos misóginos. Violência evocada por trabalho exposto do lado de fora da galeria, no qual, por mecanismo tecnológico similar, vê-se, no visor de celulares, o vídeo de uma mulher gritando a cada poucos segundos, evocação dos seguidos ataques a mulheres no Brasil atual.

A Girl And A Gun (American Shot) (detalhe, 2015) de Dora Longo Bahia (Foto: Divulgação)

Em trabalho que expõe 195 desenhos de mulheres portando armas e prontas para o embate [A Girl A Gun – American Shot] – todos feitos a partir de cenas de filmes realizados ao longo de quase um século –, Dora Longo Bahia parece querer, mais do que aderir à ideia torta de que se armar faz cessar a violência, insistir no protagonismo feminino em situações de enfrentamento e mudança, seja na política feita nas ruas, seja naquela tecida no interior de suas casas. No contexto de uma exposição que exibe e desafia necropolíticas passadas e correntes, o trabalho invoca um exército de mulheres guerreiras dispostas a confrontá-las a todo custo. Próximo a esses desenhos, a artista exibe um conjunto de outros 24, nos quais retrata índios de cantos distintos da Amazônia, feitos de traços em branco e preto com adornos pintados de vermelho, cor que também escorre de seus corpos como fosse sangue [Paraíso – Consolação (projeto para a Avenida Paulista)]. Todos guardam, a despeito disso, postura altiva, prontos para o embate com quem os quer destruir como se fossem sobras prescindíveis de um Brasil que se pretende moderno.

Revoluções (Projeto Para Calendário) (2015) de Dora Longo Bahia (Foto: Divulgação)

Em outros trabalhos que igualmente inventariam imagens, Dora Longo Bahia marca a passagem do tempo através da justaposição de fatos históricos, articulando indicadores de uma cronologia abstrata a acontecimentos concretos. Em um deles [Revolução (projeto para calendário)], associa a cada mês do ano a imagem de uma transformação política brusca ocorrida, naquele período, em algum lugar do mundo. Por traduzir as fotografias que registram esses eventos de modos tão diferentes em uma única técnica de pintura sobre papel, a artista parece, entretanto, conceder um sentido partilhado a processos de mudança tão marcadamente diversos. Em trabalho conceitualmente aparentado [Fogo], ilustra o decorrer de uma década (2008-2018) com a feitura de uma serigrafia para cada ano, todas elas retratando os incêndios de instituições culturais e artísticas brasileiras naquele período. O fato de serem feitas sobre mantas térmicas de alumínio termina por reforçar a fragilidade física e simbólica que, no Brasil, estão sujeitos lugares feitos para ativar a memória ou para falar do desassossego que o presente causa. Ambos os trabalhos recordam que a vida coletiva é feita da tensa relação entre continuidades e rupturas.

Lava Jato (2015) de Dora Longo Bahia (Foto: Divulgação)

Finalmente, e ainda buscando dar concretude factual ao tempo que incessantemente passa, Dora Longo Bahia apresenta trabalho em que associa, a dezenas de páginas de uma revista pornográfica chamada Brazil Pocket Hard, as datas e os nomes das muitas operações policiais associadas a investigações sobre a corrupção no país [Lava Jato], realizadas entre março de 2014 e abril de 2018, quando foi preso o ex-presidente Lula. Adiciona, ademais, sobre as fotografias de sexo e logo acima das denominações oficiais de cada uma daquelas “fases” investigativas (“vício”, “dragão”, “xepa”, “resta um”, entre tantas outras), pinturas que remetem a cenas de filmes ou a fotografias conhecidas, estabelecendo diálogos irônicos ou cômicos com as informações ali já contidas e embaralhando os significados de atos pornográficos, policiais e jurídicos. Criando entendimentos novos para o tempo incerto e violento em que se vive no país, em que o combate à corrupção é feito, em evidente paradoxo, às custas do corpus democrático que o permite e o autoriza. Como se procuradores e juízes assumissem, para si, a condição de um devir-condor. No sentido que os Tupis já conheciam e que fascistas de outras épocas corretamente intuíram.

Você pode gostar
Comentários