Por SELECT ART

Numa tarde de agosto em que a Amazônia ardia em chamas, em meio à maior crise ambiental da década, com a maior quantidade de queimadas registrada pelo Inpe desde 2011 –, o jurista Rubens Ricupero recebeu a seLecT em seu apartamento em São Paulo. Categórico, disparou: “Estamos vivendo tempos tenebrosos. Me lembro sempre de uma frase do Evangelho que diz ‘Esta é a hora do poder das trevas’”. Diplomata de carreira, Ricupero ocupou as embaixadas do Brasil em Genebra, Roma e Washington – cargo hoje cobiçado pelo filho 03 do presidente da Republica. Do alto de seus 82 anos, tendo exercido nos anos 1990 os cargos de Ministro do Meio Ambiente e da Amazônia e de Ministro da Fazenda, autor de livros e ensaios sobre relações internacionais, desenvolvimento econômico e comercio mundial, Ricupero tem estatura e desenvoltura para analisar criticamente o Brasil atual, sem perder a diplomacia, jamais. Antes mesmo que eu lhe dirigisse a primeira pergunta, introduziu o tema, comparando o governo Bolsonaro ao regime diratorial militar.

Rubens Ricupero: Atravessei todo esse período da história brasileira, mas não me lembro de termos tido um período tão sombrio. A meu ver, é objetivamente pior do que o regime militar. É claro que se pode dizer que no regime militar havia torturas e assassinatos, que hoje não há. Mas uma coisa curiosa é que boa parte da legislação ambiental brasileira vem desse período. Embora os militares não tivessem grande sensibilidade, eles ouviram o Paulo Nogueira Neto, que foi o primeiro grande zoólogo de São Paulo e o primeiro Secretário do Meio Ambiente. Boa parte da legislação que se criou, inclusive esses conselhos que o atual governo está querendo liquidar, vem daquela época. Vejo hoje a situação com mais preocupação, acho um regime extremamente fechado e sem sensibilidade para nenhuma das grandes causas nem da cultura, nem das causas que hoje representam o avanço da consciência social da humanidade: direitos humanos, meio ambiente, igualdade entre mulheres e homens, políticas de gênero, tolerância. O fato de todos esses temas hoje serem vistos como inimigos, parte dessa visão estranha que eles têm de que existe uma conspiração no mundo e no Brasil para minar as bases do que eles chamam de civilização judaico-cristã. Eles dizem que são forças obscuras, como o globalismo – que seria a política das Nações Unidas –, o marxismo cultural, o alarmismo ambiental. Esta é a visão dos movimentos de extrema direita mundial, do qual um dos líderes é o Steve Bannon e que nos EUA é considerado a lunatic fringe, a franja lunática do extremo das opiniões. Entre eles há inclusive aqueles que negam que a Terra seja redonda, porque um dos aspectos desse movimento é seu caráter anti-intelectual e anti científico. Eles negam o aquecimento global, que hoje já tem um nível de certeza de mais 97% de provas científicas. Mas são pessoas realmente obscurantistas, não é à toa que muitos deles mexem com coisas como alquimia e astrologia, coisas pseudo científicas.

“Há uma certa tentação de acreditar em soluções miraculosas, como essa solução de que é preciso exterminar os criminosos. Como o Governador do Rio dizendo que é preciso mirar nas cabeças e coisas assim. Além de ser uma prática que viola todos os direitos, isso é ineficaz e até contraproducente, gera um aumento da criminalidade”

 

seLecT – O sr. coloca como os assassinatos como uma diferença entre a ditadura militar e o atual governo. Mas será que a impunidade que vemos hoje, a não-resolução de casos graves, como o músico fuzilado pelo exército dentro de seu carro, à plena luz do dia, no Rio de Janeiro; o caso Marielle Franco; o líder indígena Waiãpi que resistiu a uma invasão de garimpeiros e teve causa mortis declarada por afogamento; os massacres nas prisões… Tudo isto não se equipara às mortes e assassinatos do regime militar?
Eu gosto sempre de distinguir, porque nem tudo é a mesma coisa. No caso do regime militar, o que é realmente imperdoável é que foi uma política deliberada de Estado, como está provado hoje até por revelações da CIA. Houve uma decisão do mais alto nível do Estado, até do presidente, de dizer que em alguns casos eles matariam os opositores. Hoje, na maior parte dos casos que se citam, não é uma política propriamente deliberada de ação, mas de omissão. É grave, mas é diferente. Hoje não há a contestação armada à ditadura, mas existe uma tendência repressiva muito grande. Por exemplo, em relação a esse problema que se generalizou no Brasil que é da criminalidade organizada. Nós sabemos que a criminalidade organizada só se combate com políticas integradas, que levem em conta a inteligência, a boa qualidade das informações sobre o sistema de lavagem de dinheiro. A violência gera violência contrária e o que ocorre é uma explosão de atrocidades. Como ocorreu no México, quando um dos presidentes quis declarar guerra às drogas, colocando o exército nessa função. O que aconteceu foi que aquilo explodiu, porque a violência do tráfico ainda é mais cega e mais atroz do que a violência contra o tráfico. O que acontece aqui é uma abordagem completamente equivocada. Esse governo que está no poder, um dos motivos que explica a eleição dele, é que as pessoas acreditaram ingenuamente que ele ia liquidar a criminalidade. Como existe muito desespero diante do crime, há uma certa tentação de acreditar em soluções miraculosas, como essa solução de que é preciso exterminar os criminosos. Como o Governador do Rio dizendo que é preciso mirar nas cabeças e coisas assim. Além de ser uma prática que viola todos os direitos, isso é ineficaz e até contraproducente, gera um aumento da criminalidade. Para enfrentar organizações frias, que estão determinadas a explorar o tráfico de drogas apenas por conta dos enormes lucros, é preciso ter uma estratégia igualmente bem pensada, como se faz nos países em que esse combate é eficaz. Uma das coisas que acho mais decepcionantes no Ministro da Justiça do Brasil é que ele, que deveria ter tido essa função, até agora não apresentou nenhuma estratégia coerente de combate à criminalidade. Mandou alguns projetos ao Congresso e quase todos são projetos de mudança de legislação. Independente da opinião que se possa ter sobre cada um desses projetos, não é a mudança da legislação em si que vai fazer a diferença, mas a reestruturação da maneira como a própria polícia está organizada. Mas o que digo em relação a isso, que não é evidentemente a minha especialidade, é que em todos os campos esse governo tem uma primeira característica que impressiona muito e que de certa forma pauta tudo: é um governo sem ideias, sem propostas. O Rodrigo Maia, Presidente da Câmara, que é aliado em algumas coisas do governo, já disse isso em entrevista alguns meses atrás, num momento de particular irritação, que era um governo vazio, sem propostas, sem ideias, que na campanha eleitoral tinha criticado o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida, mas que depois não tinha sido capaz de oferecer nenhuma sugestão sobre como esses programas deveriam ser aperfeiçoados ou modificados. Eu digo que é pior do que isso, porque o próprio Bolsonaro disse duas ou três vezes que o Brasil, isso ipsis literis, não é um terreno livre onde nós podemos construir alguma coisa em favor do povo brasileiro. É um terreno que nós temos que desconstruir e destruir muita coisa que foi colocada ali durante décadas. É a primeira vez na história do Brasil em que há um chefe de estado que diz que vem para destruir o que os outros fizeram e não para construir. Todos os políticos brasileiros, por mais diferentes que tenham sido suas orientações, traziam um programa. Criticavam, claro, os predecessores, mas tinham alguma coisa para apresentar. Esse não apresenta e quando apresenta são coisas banais, infantilidades ou até coisas perigosas, como a retirada dos radares das estradas, ou armar a população. 

Que chance o senhor vê de o governo, ao continuar sendo sistematicamente questionado, vir a se tornar um regime fechado de repressão?
Olha, o governo, e sobretudo a personalidade do presidente, revela claramente tendências autoritárias e ditatoriais. O próprio cotidiano desse governo mostra que ele está sempre provando o limite do possível. Vários decretos dele foram considerados inconstitucionais. Por exemplo, o decreto sobre armas, sob o pretexto de regulamentar a lei. Ele extrapolou, foi contestado na Câmara, no Senado, na Justiça. Já houve seis ou sete versões diferentes desse decreto e em cada nova versão ele recua em algumas coisas e avança em outras. Ele teve um decreto sobre a FUNAI que mostra bem como tenta forçar coisas que não têm apoio no Congresso. Logo no começo do governo, ele havia cometido esse erro colossal de retirar a Fundação Nacional do Índio do Ministério da Justiça, onde ela sempre esteve – e esteve por uma razão: a legislação brasileira não considera que o índio é um cidadão como os outros, porque, como ele pertence a uma outra cultura, em certas coisas ele é inimputável. Se um índio mata alguém, dentro de um rito da cultura deles, ou de uma luta entre tribos, ele não pode ser julgado como outro brasileiro qualquer porque ele responde a outros valores –, e é por conta disso que ele estava no Ministério da Justiça, que cuida dos direitos básicos da Constituição. Então, quando ele coloca a Fundação Nacional do Índio no Ministério da Agricultura, é um absurdo total, é, como se disse, colocar a raposa tomando conta do galinheiro. Todo mundo sabe que quem sempre quis avançar nas terras indígenas são os grandes proprietários rurais, que não aceitam as demarcações dessas reservas, querem ter cada vez mais terra. O Congresso derrotou, na hora da votação da medida provisória, e devolveu a FUNAI ao Ministério da Justiça. Ora, no Brasil existe uma lei que diz que as medidas provisórias que forem derrotadas não podem ser repetidas no prazo de um ano sobre o mesmo assunto, então era claramente uma ilegalidade. Chegou no Supremo Tribunal e lá os onze ministros, por unanimidade, fulminam o decreto e censuraram o fato de que o governo estava claramente querendo ir além de seus poderes. Ele assumiu o erro publicamente, mas voltou a fazer isso várias vezes.

“Isso não pode continuar indefinidamente e, se não houver uma melhora, em algum momento é um caldo de cultura propício a uma explosão. Como foi a de 2013, que começou de maneira inesperada, um problema de tarifas e transporte público”

 

Reincidente na ilegalidade.
É um governo que ameaça os próprios funcionários, como é o caso dos fiscais do IBAMA, que tem sido ameaçados; agora com a Receita Federal, com o COAF, com a Polícia Federal. Então, essa tendência [repressora] existe. Acredito que até agora essa tendência vem sendo contida porque as instituições, o Congresso – sobretudo a Câmara, mais do que o Senado – e os Tribunais, têm em várias situações resistido. Mas é possível imaginar uma situação em que as coisas fiquem mais graves. Temo que a situação atual seja instável. Estamos com uma Economia que está praticamente estagnada. Depois de três anos de queda muito grave, perdemos oito pontos percentuais no PIB. Isso ocorre num momento em que o Brasil tem 12,8 milhões de desempregados, uma categoria de mais de 3 milhões que está desempregada a longo prazo, há mais de 3 anos, e uma categoria enorme de pessoas que trabalha muito menos horas do que gostaria de trabalhar, porque não há trabalho suficiente. Somando isso tudo, dá 25 milhões de pessoas. Com as famílias, dá mais ou menos 70 milhões de pessoas. São pessoas que têm um padrão de consumo muito baixo, estão na beira da sobrevivência. Isso é uma das explicações da Economia não reagir, porque não há demanda, o comércio e os serviços estão muito debilitados. Isso não pode continuar indefinidamente e, se não houver uma melhora, em algum momento é um caldo de cultura propício a uma explosão. Como foi a de 2013, que começou de maneira inesperada, um problema de tarifas e transporte público. Nós não podemos saber como e onde isso vai acontecer, mas provavelmente vai acontecer. E nesse momento não vejo no governo capacidade de responder. O Ministro da Economia é um ultraliberal, um homem que não tem nenhuma experiência da economia pública, ele vem apenas do setor financeiro, ele não tem muito interesse em políticas ativas, porque os ultraliberais pensam que o mercado espontaneamente vai corrigir tudo, então ele não tem essa qualificação. O governo, por outro lado, cometeu a meu ver um outro erro gravíssimo que foi a supressão do Ministério do Trabalho. O Ministério do Trabalho estava sem dúvida muito corrompido pelos governos anteriores, mas era um símbolo que vinha da época do [Getúlio] Vargas e tinha a intenção de mostrar que era preciso equilibrar o poder do capital, dar um pouco de proteção ao trabalho. A supressão do Ministério do Trabalho e o enfraquecimento dos sindicatos elimina todas as instâncias intermediárias. Num momento de conflito social, se o conflito se tornar agudo, a eliminação dessas instâncias de intermediação é um perigo. Foi o que aconteceu na guerra dos caminhoneiros. O governo queria negociar e não sabia com quem, porque não há uma liderança. A vantagem de um sindicato é que ele representa uma categoria, quando é bem organizado, então se pode negociar e resolver um problema. A eliminação dessas instituições e o enfraquecimento delas é muito perigoso num país com tanta desigualdade. Temo que, se houver algum problema, o governo vai se ver perdido na maneira de reagir a isso e aí pode haver a tentação de usar a força e o autoritarismo. Eu espero que não se chegue a isso, mas o perigo existe. 

A Câmara então tem um papel fundamental na resistência dessas medidas estapafúrdias e autoritárias, a ponto de garantir a segurança do estado democrático de direito?
Eu diria a você que, das instituições brasileiras, a maior surpresa até agora tem sido a Câmara dos Deputados, em parte por causa da personalidade do presidente, o Rodrigo Maia, porque ele é um conservador, mas um moderado. Não é um homem de extrema direita, como é o caso do Bolsonaro, mas tem um trânsito muito bom, mesmo com a esquerda. Ele sempre teve boas alianças, foi eleito com apoio do PCdoB, tem trânsito com o PT, é um bom articulador e soube montar muito bem essa operação da reforma da Previdência que acabou tendo uma votação bem além do que se imaginava. Mas é uma quimera dizer que, graças à reforma da Previdência, ou à reforma tributária, a Economia vai retomar espontaneamente, não vai. Será necessário adotar políticas de estímulo da Economia, sobretudo na parte da demanda. O que está acontecendo com a Economia brasileira hoje é que existe uma capacidade ociosa muito grande da Indústria em alguns setores. Em média, mais de 20, 25% da capacidade da indústria não está sendo usada porque não há demanda. As empresas têm estoques muito grandes, isto é, produtos que eles já fabricaram e não conseguem vender. Nesse ambiente, ninguém investe em ampliar produção. O estímulo disso competiria ao Executivo, mais particularmente ao Ministério da Economia, que não está revelando essa capacidade. O Ministério da Economia apenas agora resolveu liberar uma parte do fundo de garantia de tempo de serviço, que é uma medida de estímulo, mas que é pouco, não basta. Eu diria que a Câmara, o Senado, o Supremo Tribunal – o Supremo hoje em dia é de comportamento mais dúbio, nem sempre tem tido um comportamento coerente –, mas eles têm tentado de certa forma impor limites a essa tendência autoritária, mas infelizmente em um regime como o brasileiro, que é um regime presidencialista, boa parte do poder, do poder da iniciativa está concentrado no Executivo. Portanto, se o presidente for inadequado, não é fácil suprir essa deficiência. Eu diria até que é impossível. 

É curioso que a resistência hoje venha da Câmara do Deputados, que há dois anos mostrou ao Brasil uma face decrépita, decepcionante. O senhor acredita que após as últimas eleições tivemos uma certa regeneração?
Houve, acho que na última eleição houve uma renovação. Nem todos os que vieram são aperfeiçoamentos em relação ao passado, mas houve um grande número de deputados muito jovens, ali da faixa dos 20 e poucos anos, que nunca tinham sido eleitos e que representam algo de novo na política brasileira. Às vezes jovens empresários, às vezes pessoas que vieram de movimentos sociais e isso se nota na Câmara dos Deputados. No Senado, houve uma grande renovação em números de pessoas eleitas, mas até agora eu não vejo a mesma qualidade que na Câmara dos Deputados. Acho também porque a liderança na Câmara é de qualidade superior. Mas não há dúvida que essas últimas eleições assistiram ao aparecimento de partidos pequenos que estão tentando renovar o Congresso. E o caminho é esse, a melhoria da democracia só se faz através desse caminho democrático.

“O presidente já insultou várias vezes o presidente da França, o [Emmanuel] Macron, a primeira ministra da Alemanha, a [Angela] Merkel. Várias vezes ironizou essas pessoas, debochou delas, de maneira gratuita, só porque esses países revelaram preocupação com o desmatamento da Amazônia, uma preocupação legítima” (Foto: OECD/Andrew Wheeler)

Como o senhor avalia a declaração do Ministro da Economia de que o Brasil pode deixar o Mercosul, caso o candidato Alberto Fernandez vença as eleições na Argentina?
É uma declaração de uma extrema infelicidade, o que não é um caso único neste governo. Quem dá o exemplo é o próprio presidente. O Ministro do Exterior, que teoricamente é um diplomata de carreira, está toda hora metendo os pés pelas mãos, dizendo bobagens que não devia dizer. Nesse governo pululam as figuras que dizem tolices, e é muito frequente que esses indivíduos todos revelem uma combinação de vários defeitos: primeiro ignorância, eles em geral têm um desconhecimento enorme das realidades internacionais, têm uma percepção completamente deformada do que é a Argentina, do que está se passando nesses países. Além da ignorância, são levianos, porque dizem coisas sem medir as consequências e sem se dar conta que pessoas em postos como esses, tudo que eles dizem acaba tendo efeito e consequências em outros países. E são pessoas que, às vezes, não têm nem sequer o mínimo de civilidade. Por exemplo, o presidente já insultou várias vezes o presidente da França, o Macron, a primeira ministra da Alemanha, a [Angela] Merkel. Varias vezes ironizou essas pessoas, debochou delas, de maneira gratuita, só porque esses países revelaram preocupação com o desmatamento da Amazônia, uma preocupação legítima, porque hoje esse é um problema global, não é apenas brasileiro. No caso da Argentina, tanto a reação do presidente, quanto a do chanceler, que também fez declarações infelizes, e do ministro Paulo Guedes são declarações que pecam pelo desconhecimento. Todos eles dão por barato que a eleição do Alberto Fernandez significa que a Argentina voltaria a ser populista, de esquerda, do Foro de São Paulo [organização que reúne partidos e organizações de esquerda], e não é nada disso. O Alberto Fernandez faz parte de um grupo de líderes peronistas que é um grupo de centro, que há muito tempo está tentando levar o partido peronista para uma posição mais de moderação, de classe média. Ele rompeu com o governo da Cristina Kirchner em 2014 e voltou agora porque ela se deu conta que tinha um índice de rejeição muito grande e teve a inteligência de colocá-lo na cabeça da chapa. Mas ele não é um títere, ele é uma personalidade forte, é um homem lúcido, professor universitário titular da faculdade de Direito, professor de Direito Penal, tem obras sobre Direito Penal. Não é uma pessoa qualquer. Então é óbvio que esse homem, se for eleito, tendo a situação economicamente difícil que ele vai herdar, a primeira coisa que vai fazer é procurar unir o país, tranquilizar os mercados. Essas declarações que foram feitas aqui são extemporâneas, precipitadas, como eu disse, levianas, superficiais, não correspondem à verdade. É curioso que ele até tenha respondido com muita educação. Ele disse “eu não vou responder porque o Brasil é mais importante que o Bolsonaro, nós queremos ter boas relações”. Ele deu uma lição. Mas os daqui continuam com duas pedras na mão. O Guedes é um homem que não tem um temperamento para o cargo, é uma pessoa que diz o que o impulso lhe dita e na verdade ele tem muito pouco conhecimento de assuntos internacionais. Já na época da campanha ele revelou que não compreendia o que era o Mercosul. O Mercosul não é só um acordo comercial, o Mercosul é uma grande ideia de integração política. Um país como a Argentina, a região do Prata, uma região onde o Brasil sempre teve muitos conflitos, conflitos que duraram praticamente 300 anos, desde 1680 quando os portugueses construíram a colônia do Santíssimo Sacramento, em frente a Buenos Aires, até mais ou menos a formação do Mercosul, já nos anos 1980, nós tivemos três séculos de guerras e conflitos com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Nossas guerras foram todas nessa área e isso foi superado finalmente através de um grande movimento de integração, como foi na Europa a integração entre a Alemanha e a França na União Europeia. Então essas bobagens que eles dizem ignoram isso tudo e, sobretudo, como eu disse, não têm nenhum fundamento na realidade. São hipóteses que eles supõem que vão acontecer nas eleições. É tudo hipotético, leviano e revela falta de qualificação. Os romanos diziam que esses cargos exigem gravitas, gravidade, que é a pessoa ter o sentimento da responsabilidade, coisa que esses membros do nosso governo não têm.

“É óbvio que esse homem [Alberto Fernandez], se for eleito, tendo a situação economicamente difícil que ele vai herdar, a primeira coisa que vai fazer é procurar unir o país, tranquilizar os mercados”

Que importância tem a integração política, econômica e cultural do Mercosul com a Comunidade Européia? E qual a importância do Mercosul para o Brasil manter suas relações com a América Latina? Porque sempre tivemos essa questão da barreira cultural da língua, do brasileiro não se ver como latino-americano. Como o senhor vê essa questão?
Nessa questão há dois aspectos, um é o acordo de comércio entre o Mercosul e a União Europeia e o outro é como o Mercosul pode contribuir para uma maior integração da América do Sul e da América Latina em geral. O primeiro aspecto é extremamente importante porque essa região do Cone Sul, de que nós fazemos parte, sempre foi mais ligada economicamente à Europa do que aos Estados Unidos. Os países do norte – México, Caribe, América Central, até mesmo Venezuela – ao contrário, sempre tiveram um comércio sobretudo concentrado com os Estados Unidos. Não era o nosso caso. Nós no passado tivemos uma relação maior com a Europa, isso era muito claro no caso da Argentina, Uruguai, mas também do Brasil. E para nós é bom, em matéria de comércio, ter um sistema em que equilibramos nossos parceiros. Porque veja você um bom exemplo de ter um comércio concentrado só em um país: o México, 80% de seu comércio é com os Estados Unidos, porque é um país contíguo, então ele depende muito do mercado americano, o que em circunstâncias normais é uma coisa positiva. Mas quando há uma circunstância como essa de um presidente Trump, o México paga um preço muito grande. O Brasil nunca teve isso, nem a Argentina. São países que têm mercados diversificados. O maior dos nosso parceiros é a China, hoje representa mais de 20% do nosso comércio. Em seguida vem a União Europeia, que é mais ou menos a mesma coisa, os Estados Unidos que é um pouco menos. É muito importante esse acordo com a Europa e há outro aspecto que vai além da relação puramente econômica: para nós, os Estados Unidos como modelo político ou social está muito distante dos nossos hábitos e das nossas aspirações. Nós da América Latina estamos mais próximos do sistema europeu, que é um sistema misto de economia de mercado mas com muita proteção de bem estar social e preocupação ambiental. Já o sistema americano é muito centrado no mercado, na empresa privada, muito distante da nossa maneira de ser. A Europa hoje, de todos os grandes blocos de poder – que são os Estados Unidos, a China, a Rússia e a União Europeia – é o mais fiel à democracia liberal, ao estado de bem estar social, à busca do desenvolvimento sustentável, de um meio ambiente saudável. Os outros três são três blocos em que a tendência é para uma democracia antiliberal, cada vez mais autoritária, com sacrifício do bem estar social, com pouca sensibilidade para direitos humanos ou para meio ambiente. Então, a nossa afinidade cultural e intelectual é muito mais com a Europa e esse acordo é muito bem vindo desse ponto de vista, do desenvolvimento dessa relação. Agora, o segundo aspecto, que é da própria união da América. A nossa circunstância é de América Latina. Nós, como você bem disse, temos uma colonização diferente, uma língua diferente, mas felizmente não chega a ser um obstáculo. Nós temos muito mais em comum do que coisas que nos separam. Na verdade, a nossa história é muito semelhante, o nosso nível de desenvolvimento, não só desenvolvimento político, mas econômico, social, cultural, é comparável com os países vizinhos, tanto naquilo que é bom, quanto naquilo que é ruim. Por exemplo, a criminalidade é comum aqui, no México, em Honduras, na América Central, na Venezuela. Nós partilhamos tanto as mazelas quanto as qualidades culturais. O que mostra que é realmente a mesma realidade e essa realidade tem que ser aperfeiçoada juntos. O que nós precisamos é reforçar esses laços. O grande desafio hoje é não só consolidar o Mercosul, depois dessa eleição argentina, mas procurar uma aproximação com os países da Aliança do Pacífico que são o Chile, o Peru, a Colômbia e o México. Esses quatro países formaram um grupo que já é bem integrado com o comércio mundial, que tem laços com os países asiáticos e nós precisamos nos aproximar desse grupo. Nós já temos acordos individuais com o Chile, com o Peru, menos com a Colômbia e o acordo com o México ainda falta muito. Mas precisamos ter acordos do Mercosul integral com esse grupo e uma coisa que falta muito a nós é um conhecimento maior recíproco. Nós conhecemos muito pouco da realidade, da história, da cultura do México, da Venezuela, da Colômbia, do Peru e eles nos pagam na mesma moeda. Nunca houve no currículo escolar dos países latino americanos o espaço que se deveria dar ao estudo dos vizinhos. É preciso que haja iniciativas do governo para uma política cultural ativa de integração, como os europeus têm. 

“O México, 80% de seu comércio é com os Estados Unidos, porque é um país contíguo, então ele depende muito do mercado americano, o que em circunstâncias normais é uma coisa positiva. Mas quando há uma circunstância como essa de um presidente Trump, o México paga um preço muito grande”

 

Talvez o setor artístico e cultural procure preencher essa lacuna com as bienais, por exemplo. Temos a Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, agora a Bienal Sur, que a Argentina criou. Talvez culturalmente o setor artístico procure estabelecer esses diálogos?
São iniciativas importantes que antes não existiam. No passado, quase não havia nada. Agora, é importante que isso receba um impulso dos governos. Na Europa, boa parte desses programas de aproximação nasceram mesmo da União Europeia, são programas políticos. Até mesmo para o ensino de idiomas, aprendizado de cultura. Aqui ainda falta muito. Há iniciativas, por exemplo, antigamente, quando a Venezuela era outro país, tinha aquela famosa biblioteca a Ayacucho, em que eles imprimiam todos os clássicos da América Latina, inclusive do Brasil, para que fossem melhor conhecidos, traduziam do português para o espanhol. Esse tipo de coisa precisa evoluir. No passado, o Brasil tinha muita influência do cinema argentino e do cinema mexicano. Depois houve um período em que isso desapareceu, agora estão reaparecendo sobretudo filmes argentinos e chilenos. Mas existe muito campo para ampliar ainda.

Você pode gostar
Comentários