Por SELECT ART

Na noite de quinta-feira, 22 de agosto, o Masp lotou outra vez. O museu paulistano abriu simultaneamente três exposições que integram seu eixo temático de 2019 Histórias das Mulheres. Na sala de vídeo, acontece uma retrospectiva dos vídeos de Anna Maria Maiolino. No 1º e 2º subsolos, a exposição de arte contemporânea Histórias Feministas: Artistas Depois de 2000, com curadoria de Isabella Rjeille. E no 1º andar, ocorre a coletiva História das Mulheres: Artistas Antes de 1900, que tem a curadoria assinada por Mariana Leme, Lilia Schwarcz e pela americana Julia Bryan-Wilson, que passou a atuar como curadora-adjunta do museu no começo de 2019.

Retrato de Julia Bryan-Wilson (Foto: Divulgação)

Professora de arte moderna e contemporânea da Universidade Berkeley, na Califórnia, e diretora do Berkeley Arts Research Center, Bryan-Wilson pesquisa teorias queer e feministas, histórias dos artesanatos e arte latino-americana. Em 2017, publicou o livro Fray: Art and Textile Politics e com essa pesquisa acabou alimentando a proposta da exposição no Masp, que, além de exibir pinturas, apresenta um conjunto de trabalhos têxteis produzidos na Inglaterra, nos Estados Unidos, nos Andes latino-americanos, na Índia, no antigo Império Otomano, em Marrocos, Egito, Filipinas e no atual Uzbequistão. Em entrevista para a seLecT, a curadora conta sobre sua relação com a produção latino-americana, em especial a brasileira, questiona a fixação contemporânea por autoria e reflete sobre como o tecido tem sido usado hoje em contextos políticos de resistência.

seLecT: Como se tornou parte da equipe curatorial do Masp? Essa é a primeira exposição no museu que você assina como curadora, certo?
Julia Bryan-Wilson: Eu já tinha uma relação informal com o Masp há alguns anos. Participei de algumas conversas, contribuí para uma antologia e eventualmente conversava com o Adriano Pedrosa, diretor artístico, e com o André Mesquita sobre recomendações de outros escritores. O Adriano contratou vários curadores-adjuntos especializados em diferentes áreas e quando eu vim em dezembro [de 2018] para participar de uma palestra sobre as histórias da dança, pelo que eu entendo, ele percebeu que eu seria uma boa opção para ser curadora-adjunta pelos próximos dois anos para ajudar nas exposições Histórias das Mulheres e Histórias das Danças, que estou co-curando e abre no ano que vem. Eu fiquei muito feliz de ser convidada porque eu considero o Masp a instituição mais interessante e progressista no mundo e o que está acontecendo lá é importante e urgente em termos de repensar narrativas tradicionais na história da arte. Eu não teria dito sim a nenhum outro lugar, mas eu disse sim, mesmo sendo tão longe, porque eu estou honrada de ser parte desse lugar extremamente visionário.

E qual era sua relação com o Brasil e sua cultura antes disso?
Uma das minhas áreas de especialidade é arte latinoamericana. Eu já lecionei por anos sobre arte brasileira, especialmente arte neoconcreta. Arte brasileira nos anos 1960, 1970, [Hélio] Oiticica, [Lygia] Pape, [Lygia] Clark, essas pessoas agora já são bem centrais para narrativas da arte contemporânea e especialmente se você pesquisa trabalhos da América Latina como eu. Mas minha relação não era super forte, eu havia morado no Chile e no México. Minhas experiências na América do Sul não eram baseadas no Brasil. 

Você só havia visitado o Brasil para participar das palestras no Masp, então?
Sim, só para as palestras. E eu me apaixonei completamente por São Paulo. Eu acho que é uma das cidades mais interessantes do mundo. Eu realmente amei. Quando eu voltar em dezembro quero conhecer outras cidades.

Sobre a exposição, porque era importante mostrar ao lado das pinturas um conjunto de trabalhos têxteis e trazer à tona a relação entre arte e o que se chama de artesanato? Imagino que isso tenha a ver com a sua pesquisa sobre as políticas dos trabalhos têxteis.
Para mim isso era realmente crucial e eu acho que na exposição final isso frisa um ponto muito forte. A mostra seria muito diferente se só tivesse pinturas. Eu publiquei um livro há dois anos sobre têxteis, então é algo a que eu me dedico muito, mas pensando sobre o conceito da exposição – de tentar encontrar artistas mulheres antes dos anos 1900 – me surpreendeu que a maior parte das artistas eram da elite. Desde a renascença, com a invenção da palavra arte, isso é uma formação de elite e é reservada. Na verdade arte foi uma categoria praticamente inventada para excluir mulheres. Então já supor como certo, presumir que é somente pintura a óleo que conta como arte, não é um conceito muito feminista. Para realmente descolonizar a categoria da arte e realmente fazer uma crítica feminista, nós precisamos desmantelar a categoria arte como um todo. Precisamos perceber que mulheres tem feito arte, e com grande habilidade, criatividade e competência, desde o início dos tempos. Têxteis já foram desconsiderados como “arte”. Então para mim era muito importante que tomássemos esse partido. E quando você olha para as pinturas ao lado dos trabalhos em tecido, muitas surpreendentes conexões aparecem. Você vê como muitos dos detalhes em tecido aparecem nas pinturas. A colcha de retalhos dos Estados Unidos, com os pequenos pedaços de pano que unidos formam um corpo óptico, se relaciona com o Impressionismo de alguém como Mary Cassatt, que também tem essas pequenas passagens de cor que formam uma história visual. Então para mim, isso construiu uma exposição mais extensa, visualmente interessante e feminista.

Tecido de autoria desconhecida, Grã Bretanha, década de 1730, seda sobre tafetá de seda, 89,5 x 66 cm (Foto: Divulgação)

No texto curatorial, vocês afirmam que os trabalhos têxteis foram feitos por mulheres, individualmente ou coletivamente. Como é possível identificar essa autoria feminina?
Uma coisa que nós pensamos, mas não costumamos falar, é que todos os trabalhos têxteis sempre foram feitos por mulheres. Isso obviamente não é verdade. Existem diversos sistemas regionais de trabalho de gênero que podemos contabilizar. Então não se pode fazer uma afirmação geral. Mesmo. Não seria preciso. Mas em muitas regiões do mundo, por um período, haviam fortíssimas divisões de trabalho. E toda a evidência, em todos os sentidos, como arqueológico, história oral, fotografias, gravuras, tornam muito claro que alguns formatos de trabalho, como o bordado muito refinado – do tipo do bordado do Reino Unido na exposição ou a renda de imigrantes brasileiros –  foram feitos por mulheres. Podemos dizer isso com muita certeza. Claro que deve haver alguma figura que fuja dessa regra, mas teria sido extremamente, extremamente excepcional.

Também me chamou a atenção que todos os trabalhos da exposição são acompanhados de legendas ampliadas. Foi mais difícil contextualizar os trabalhos que tem autoria desconhecida?
Uma das coisas incríveis sobre a exposição é aprender mais sobre a vida dessas mulheres. Muitas das pintoras, tristemente, morreram ao dar a luz ou sofreram de tragédias. Acho que a história da arte é ainda muito fraca em termos de histórias reais sobre mulheres. Mas é um grande desafio quando não sabemos a autoria de uma obra. E claro que essa noção de um trabalho muito atrelado a um único autor é uma invenção muito recente. Arte costumava ser feita coletivamente ou anonimamente ou era comissionada pela igreja. Houve muitos tipos de modelo e não é necessária sempre a imagem da alma genial, pessoa excepcional, trabalhando sozinha. Isso também foi uma concepção muito masculinizada. Eu acho que foi um desafio fazer as legendas serem tão interessantes e importantes. Mesmo sem saber quem fez esse exato bordado, nós podemos apontar para circunstâncias gerais que podem iluminar essa produção.

Você enxerga uma relação conceitual entre a falta de autoria dessas produções têxteis e a proposição da exposição de iluminar a trajetória de mulheres que foram invisibilizadas pela história?
Sim, incluindo nomes que jamais saberemos, porque eles não foram valorizados em seu tempo ou tinham valor diferente. A exposição não tenta afirmar que as pinturas e os têxteis são iguais. Eles não são. Eles têm funções diferentes, eles provaram seus valores de formas diferentes, eles são feitos em contextos diferentes. Muitas das mulheres que fizeram esses trabalhos em tecido não devem ter considerado artistas, elas não eram tratadas como tal. Os trabalhos não são equivalentes. Mas nós queríamos enfatizar que a criatividade e habilidade das mulheres é algo que deve ser celebrado dentro dessas múltiplas formas de produzir. 

Trabalhos têxteis têm sido exibidos em contextos de arte. Mas algumas vezes museus querem muito saber exatamente quem os fez. Em outras palavras, eles querem tornar a autoria novamente a história central. Se nós sabemos o autor, é importante dizer. Mas nós não sabemos sempre. Arte não precisa ser feita por artistas. Não precisa existir uma pessoa reivindicando a autoria. Tantos trabalhos feministas foram feitos coletivamente…

De que forma olhar para essas obras têxteis pode se relacionar com reivindicações feministas atuais?
Eu acho que outra coisa que acabou acontecendo e foi um eixo tão importante entre as duas exposições [Histórias das Mulheres e Histórias Feministas] é precisamente o uso de tecidos, porque tantas artistas contemporâneas estão olhando para têxteis para produzir. Carolina Caycedo, Tuesday Smiley… Têxteis para algumas pessoas significa trabalho feminino, mas eles também estão frequentemente sendo usados para situações políticas. Eles se tornaram banners ou tecidos de resistência. Eu acho que muitas mulheres artistas, trans, não binárias, artistas feministas como um todo, entendem o tipo de poder do tecido para sinalizar essa história. 

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