Por SELECT ART

Diferente do que normalmente acontece com a Bienal de São Paulo, que abre a cada dois anos uma grande exposição internacional em meados de setembro, a 34ª edição da mostra terá início em fevereiro de 2020. Com proposta curatorial de Jacopo Crivelli Visconti, elaborada com o curador-adjunto Paulo Miyada e os convidados Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi e Ruth Estévez, a Bienal começa com as exposições individuais de Ximena Garrido-Lecca (Peru), Clara Ianni (Brasil) e Deana Lawson, acompanhadas de performances de Neo Muyanga (África do Sul), León Ferrari (Argentina) e Hélio Oiticica (Brasil), de quem será apresentado, no dia da abertura da exposição coletiva em 5/8, o trabalho inédito A Ronda Da Morte, concebido em 1979. Depois dessas primeiras montagens, os artistas serão reapresentados no contexto na mostra principal, a fim de propor novas e diferentes leituras. 

Em conversa com a seLecT, os curadores Jacopo Crivelli e Paulo Miyada falam sobre os assuntos que devem emergir da 34ª, respondem a críticas das mídias sociais sobre a equipe ser “excessivamente branca e masculina” e revelam o caráter essencialmente político da exposição, que já pelo título Faz Escuro, Mas Eu Canto, se diferencia da edição anterior da mostra.

seLecT: Como ocorreu a escolha das exposições e artistas que formam essa espécie de primeiro ato da 34ª Bienal? Os assuntos trazidos por essas produções são simbólicas do que será exibido na exposição coletiva de setembro?
Jacopo Crivelli Visconti: Acho que tem um fato simbólico sim no fato de serem três mulheres jovens, com ênfase em questões latino-americanas ou da diáspora africana. Sem dúvida elas já dão uma pista do que a Bienal quer ter bem representado na exposição. Todas elas e as três performances apontam para alguma coisa que vai voltar de outra forma na exposição principal, que é um pouco o modus operandi da Bienal como um todo. Você vê as coisas primeiro de um jeito, depois elas voltam de outro e quando ver aquelas mesmas obras de novo, você faz uma outra leitura, entende de uma maneira um pouco diferente. As primeiras individuais e performances tem um pouco esse caráter. Aludem a algo que depois você vai encontrar de novo. Ao mesmo tempo, a complexidade com que esses assuntos vão ser tratados na exposição maior é muito diferente. Propositalmente, não estamos entregando tudo agora porque de novo, a ideia é que seja sempre um processo, que você vá descobrindo as coisas pouco a pouco. Nossa postura como curadores, propositores, é que cada um depois faça suas leituras e interpretações. A gente nunca vai vir com afirmações definitivas, monolíticas ou absolutas. 

Paulo Miyada: Existe uma preocupação de que a Bienal aconteça um pouco como um ensaio, que não tenha a pretensão de um discurso único fechado e que o ponto de partida seja o trabalho artístico e não um conjunto fechado de teorias e discursos. A pesquisa tem sido feita assim. A gente não começou definindo um tema fechado e as suas subcategorias para depois pesquisar quem poderia dar corpo pra essa articulação pré-fabricada. É o contrário, a gente começou trazendo os artistas que nos pareciam mais importantes para esse momento histórico. E a partir da discussão sobre esses artistas é que os subtemas e o desenho da exposição tem sido feito. Não só envolvendo os cinco curadores, mas também instituições parceiras internacionais e locais, que também não estão simplesmente abrindo espaço para serem ocupadas, mas trazem conversas que são alimentadas pelo seu público, pela sua história, pela sua pesquisa, pelos seus curadores. A partir daí começam a se formar os temas que ficam cada vez mais claros. E esse é o modo pelo qual a gente espera que a Bienal aconteça para o público. 

E que tipo de assunto essas três artistas e as três performances vão aludir? Elas já têm em comum o fato de serem mulheres. Isso foi um acaso ou foi proposital?
JCV: Nada é por acaso, mas as temáticas que cada uma trata na verdade são muito distintas. A Deana Lawson é uma fotógrafa norte-americana que pesquisa a diáspora africana de uma maneira ampla. Para a Bienal, em colaboração com a Kunsthalle Basel, a gente trouxe a Deana para Salvador, porque é um lugar que ela há muito queria ir para fotografar, como parte dessa pesquisa grande sobre diáspora africana. A Clara [Ianni] tem um trabalho muito mais focado na realidade brasileira, de um ponto de vista político, social, muito coerente, muito denso. E a Ximena [Garrido-Lecca] é peruana, mas que tem muitas relações com a América Latina e com o Brasil, como parte de uma história latino-americana que tem muitas correspondências. Ela foca mais especificamente num processo de construção do trabalho que se dá ao longo do tempo. Ela tem feito várias exposições em que as coisas vão acontecendo durante a exposição. Provavelmente aqui ela vai ter a oportunidade de fazer isso numa escala que nunca conseguiu. 

PM: A Bienal enfatiza que o sentido da leitura de uma obra não é algo fixo, estável, acabado, mas é algo que é construído, que se transforma de acordo com o lugar, o tempo e a conversa em torno dela. Esses artistas tem trabalhos que lidam de formas complexas e contraditórias com a ideia de identidade e de história. Eles de uma certa forma lembram que identidade e história não são coisas prontas, que só tem uma leitura. Pelo contrário, dependendo dos modos de apresentar, dos usos da linguagem e com quem você está fazendo uma conversa, existem contaminações, releituras, reelaborações que vão para além das palavras-chave associadas a cada grupo, a cada momento a cada época. 

Por que não é um acaso começar com três mulheres?
JCV: Para fazer uma afirmação da necessidade de dar um espaço maior às mulheres. Não que elas não tenham, principalmente em anos recentes, mas historicamente elas não tiveram. Mas há homens, já falecidos, que fazem performances de grande porte, que é algo que as mulheres jovens têm menos possibilidade de fazer. A gente não quer mascarar uma situação, a gente está mostrando como há proposições válidas no espectro como um todo. O trabalho do Neo Muyanga junta tudo isso, porque ele é homem, mas trata de questões da diáspora africana, de escravidão, de uma maneira mais ampla. Não à toa nós estamos colocando ele na abertura mesmo da exposição. 

PM: Uma parte dos motivos que faz você pensar que “faz escuro”, não só no Brasil, como no mundo, é o fechamento ao diálogo, à diversidade, o acirramento das fronteiras, a xenofobia, os fundamentalismos, os novos nacionalismos, quer dizer, existe um cenário que dificulta a escuta e a abertura à complexidade e às trocas entre os povos e os modos de existir no mundo. Acho que esses artistas, nessa diversidade, são uma lembrança de que é fundamental que as vozes precisam ser muitas. Tem várias maneiras de lidar com esse conflito, com essa escuridão global. Mas, para qualquer uma delas, é fundamental que vozes muito diferentes estejam presentes, com recados esteticamente fortes, elaborados, e também a partir de pontos de vistas muito variados porque, se não, toda a ideia de diálogo fica fragilizada. 

Dios (1964), caixa com colagem sobre papel de León Ferrari (Foto: Colección Família Ferrari)

Os comentários, especialmente em redes sociais, de que a curadoria desta Bienal é branca e masculina, influenciaram o jeito pelo qual vocês começaram a pensar na exposição?
JCV: Não. Minha preocupação principal é que a Bienal seja um lugar onde a maior diversidade possível seja trazida e mostrada. Não para dar uma resposta, mas porque é o que é preciso fazer. O desejo é subir o nível do debate, da discussão, não baixar. Desde o começo das nossas discussões, tínhamos o desejo de trazer produções pouco vistas. Terá uma ênfase grande na produção africana e da diáspora africana, na produção indígena brasileira e de outras partes do mundo, como do Caribe. Agora, sobre o fato de ser muito masculina, eu não sei, porque também está entrando a Elvira [Dyangani Ose, diretora do The Showroom, de Londres] para curar as publicações. Então somos seis, três homens e três mulheres. 

PM: O métier do grupo curatorial é muito mais complexo do que um slogan. Dos seis, cinco tem uma história de migrações, de terem nascido em um lugar, trabalhado em outro, às vezes se mudado para continentes diferentes. Você tem um grupo que tem pessoas mestiças. A Elvira ainda traz uma outra voz, que participa de outro debate, ali na Inglaterra, mas também a partir de um histórico de migrações pelo mundo e compromisso direto com a diáspora africana. É um grupo muito mais complexo se você observar os currículos, as biografias, os lugares onde viveram, do que um achatamento de que é uma coisa ou outra. Essa complexidade das biografias e identidades é algo fundamental para o [Édouard] Glissant, que é uma das referências centrais da exposição. A gente está muito mais preocupado com as crioulizações, como Glissant fala, com as misturas, com as traduções e faltas de traduções, do que com o simples preenchimento de caixinhas que pareçam estáveis e estanques. 

JCV: O debate é central. Agora, a maneira como você lida com isso é o que faz de fato avançar ou ficar tudo na mesmice. 

PM: Pode ser legal descrever o trabalho do Neo. Não é à toa que é ele quem faz a primeira performance. O Neo Muyanga é um artista que vem do campo musical e da pesquisa, da composição, da performance e também do ativismo. Ele tem atuado a partir da África do Sul por muitos lugares, pesquisando histórias de sonoridades negras, diaspóricas, para além de ideias essencialistas ou de simulação de alguma pureza, mas como um resultado uma história de lutas, violências, conflitos e contaminações. Esse projeto que a gente trouxe, que estamos co-produzindo com a bienal de Liverpool, é sintomático. Ele pesquisa a história da música Amazing Grace, que é um grande hino gospel, anglo-saxão, da luta do movimento negro, da luta que foi importante para os movimentos abolicionistas e desde então volta. Esteve na voz de Aretha Franklin, foi cantada pelo [Barack] Obama, está no filme do Steve McQueen. Ao pesquisar a história dessa música, ele descobre que seu compositor na verdade era um homem britânico, branco, escravagista, que fazia o triângulo do Atlântico, passando pelo Reino Unido, pela África e pelo Brasil. E era uma figura tão contraditória que os próprios ingleses o expulsaram, na África ele foi escravizado pelos africanos, passou um tempo lá, conseguiu em algum momento fugir, entrou num navio inglês e foi voltar para o Reino Unido, passando pelo Brasil. Era um navio escravagista.

JCV: Aqui ele levou um tiro e quase morre também. Na África, ele ficou doente, achou que tinha uma bruxa que estava matando ele, mas ele conseguiu se recuperar, vir para cá, ficar um tempo, acho que esperando o navio, e levar um tiro.

PM: Na volta para o Reino Unido, o navio pegou uma tempestade de duas semanas, tinha tudo para naufragar e ele nesse processo teve uma espécie de iluminação, se converteu, depois virou pastor e abolicionista e compôs a música que é reconhecida como base para o movimento negro abolicionista. Agora o Neo Muyanga vai fazer uma nova composição com um coro de mais de cem pessoas, ocupando o centro do prédio, reconectando essa música à essa história contraditória, e mais complexa do que a gente imagina, e também às suas raízes. Ele vai reabrir essas raízes, mas ao mesmo tempo relembrar dessas violências embutidas nessa música que depois virou ferramenta importante de afirmação e liberdade. Esse tipo de complexidade nos interessa, para além de falar que ele é negro e africano. Além disso, ele está trabalhando com a história de um branco, escravagista e num contexto brasileiro, trazendo sonoridades afrobrasileiras. 

JCV: Esse trabalho vai estrear aqui e depois vai ser feito de novo na inauguração da bienal de Liverpool, mas obviamente diferente, com outros coros. A gente gostaria de fazer também acontecer isso na África em algum momento, para fechar esse triângulo.

A parceria com um país africano acontece no CCA Lagos, na Nigéria, para mostrar a obra da Clara Ianni?
JCV: As três exposições iniciais a gente queria que acontecessem em outros lugares. Nessa ideia de fazer leituras diferentes dependendo do contexto. Você ver uma exposição da Clara Ianni aqui e também na África. Mesmo que seja a mesma mostra, serão duas leituras completamente diferentes. Foi uma troca de um artista que nos interessava e que interessava à instituição. A Ximena vai para São Francisco [no CCA Wattis] e a Deana na verdade vai ser primeiro em Basel e depois aqui. 

De que forma a América Latina se articula na Bienal?
JCV: Historicamente, os artistas brasileiros e latino-americanos sempre tem um peso grande no total de participantes de uma Bienal e acho que nesse caso não será diferente. Mas as temáticas que a gente está trabalhando não são oriundas de considerações geopolíticas, são universais. A presença latino-americana será forte, mas não pelo fato de eles serem artistas latino-americanos. Será uma tentativa de fugir de uma leitura de cotas para pensar em questões centrais para o momento atual do mundo. A maioria das temáticas que a gente vai tratar reverbera de uma maneira mais forte em determinados contextos e um deles é obviamente a América Latina. Pouco a pouco, todas essas questões de representatividade vão ser preenchidas de uma maneira natural. 

PM: Acho que se você está falando da necessidade de pensar as relações para além de estruturas fixas, dos significados feitos, de tentar entender esses fluxos de violência, identificar os fluxos de mistura, de hibridização, crioulização, etc, naturalmente você precisa olhar as vozes que estão emergindo dessas zonas de conflito e dessas fronteiras. Porém, também coerentemente com isso, nos parece mais interessante que você não tenha um núcleo da Bienal que seja sobre América Latina, etc, mas que isso atravesse toda a Bienal e todas as discussões. Isso está nos seis artistas e estará nos 100. 

Operativo Pacem in Terris (1972), de León Ferrari, dirigido por Pedro Asquini (Foto: Arquivo Ricardo Paoletta, Cortesia Adriana Banti)

 

Pensando sobre a 33ª Bienal de São Paulo, que foi recebida com muitas críticas, especialmente por não tratar sobre questões urgentes de seu momento, existem certas expectativas sobre o caráter político da 34ª. Qual será a tônica nesse sentido?
JCV: Acho que a última tinha uma questão muito tautológica, dentro do sistema da arte, de propor que cada um dos artistas fizesse suas próprias curadorias. Ela ia para outro caminho. Esta Bienal, a partir do próprio título, está pensada a partir do momento em que a gente está vivendo. Faz escuro, mas eu canto reconhece, e tem como origem da discussão, esse momento que vivemos; que a gente considera que, no mundo inteiro, é um momento de escuridão, de trevas, mas também considera que é um momento em que pode haver cantos, pode haver uma produção artística, uma reflexão filosófica. É uma exposição que faz questão e defende um âmbito para essas atividades mesmo reconhecendo que é um momento de escuridão. Se você considera que a última foi totalmente apolítica, eu acho que a nossa é essencialmente política, mas é política de uma maneira ampla. Ela já está, pela sua própria natureza, focada em coisas um pouco maiores do que as que estão na pauta do noticiário das 9h. 

Cartaz da 34ª Bienal de São Paulo, que tem a identidade visual assinada pelo artista e designer Vitor Cesar

PM: Se a gente pensar no título, no ciclo de vida dele, ajuda a abrir esse leque que o Jacopo está falando. O Thiago de Mello, um poeta da Amazônia, escreveu entre 1962 e 1963 um poema chamado Madrugada Camponesa, que terminava com os versos “Faz escuro, mas eu canto, porque amanhã vai chegar”. Era um momento de uma certa esperança no país, em que ele olhava para as dificuldades históricas da vida no campo e falava – camponeses, pessoas que estão trabalhando, faz escuro mas eu canto – como um gesto de dizer que havia um outro mundo no horizonte. Depois, ele re-publica isso num livro em 1965, quando a situação geral do país já era muito diferente e você já tinha um cenário dominado pela polarização, pela perseguição, em que aquele primeiro otimismo não estava mais no horizonte. O trecho do poema virou o título do livro, talvez com um caráter mais soturno. Depois em 1966, virou uma canção cantada pela Nara Leão, um ícone da geração dos anos 1960. Ali o texto do poema não está mais falando do campo, mas de toda uma geração que precisava reinventar alguns modos de ter voz, ter fala, num momento de conflito social. E depois, em 1968, o Thiago de Mello foi preso na passeata dos 100 mil, entrou na prisão sem saber o que aconteceu com ele e quando olhou para a parede da cela da prisão, estava escrito esse verso, deixado pelo prisioneiro anterior. Aquilo virou a última esperança, quando tudo parecia que podia acabar de forma muito violenta. Em cinco anos, esse verso teve toda essa abrangência. Agora, 50 anos depois, a gente imagina que ele possa ser uma coisa que ressoa por toda a Bienal, uma ajuda a pensar sobre o Brasil e o mundo todo e um chamado para que as conversas possam ir além da simples constatação de que faz escuro. Faz escuro, estamos todos de acordo, existe uma situação conflituosa, com prognósticos muito complexos para toda a humanidade. Diante disso, o que é cantar? Quem pode cantar? Como seguir cantando? E como um canto pode transcender as barreiras que parecem intransponíveis?

Serviço
34ª Bienal de São Paulo – Faz escuro mas eu canto
Exposições individuais:
Ximena Garrido-Lecca/ Neo Muyanga: de 8/2 a 15/3
Clara Ianni / León Ferrari: 25/4 a 8/6
Deana Lawson: 18/7 a 23/8 de 2020 

Exposição coletiva*: de 5/9 a 6/12 de 2020
* com performance de Hélio Oiticica na abertura 

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