Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente que conheceu a Amazônia duas semanas atrás e considera a trajetória de Chico Mendes “irrelevante” foi alçado ao primeiro escalão do governo Bolsonaro graças ao apoio explícito do agronegócio. O advogado ocupou, entre 2016 e 2017, a secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, para onde foi alçado após prestar serviços como secretário particular de Geraldo Alckmin. Foi saído da repartição sob suspeita de fraude, reconhecida pela Justiça logo a seguir com uma condenação por improbidade. No mesmo mês em que foi indicado ministro, dezembro último, seus direitos políticos foram cassados por três anos. Ele ainda recebeu multa de dez vezes o salário de secretário. Na esfera cível, segue sendo investigado por improbidade administrativa e possíveis crimes de abuso de autoridade, coação e usurpação de função pública, que podem lhe valer um processo criminal e até prisão. O inquérito, do Ministério Público de São Paulo, foi prorrogado há uma semana.
Salles agiu, na elaboração do plano de manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, para favorecer os interesses da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), beneficiando empresas de setores com elevado impacto ambiental, como o de papel e celulose e o de mineração. “A mineração é muito impactante”, diz o produtor Leandro Leme, do Grupo Especial de Atenção ao Meio Ambiente do Ministério Público de São Paulo. “O pessoal da USP alertou para a gravidade da situação. Se você retira, por exemplo, areia da margem do Tietê, vai levar sedimentos para o leito do rio, tornando mais graves as enchentes por onde passa o rio.”
A atuação do ministro passou por cima das normas legais seguidas para a criação de planos de manejo (conjunto de regras que precisam ser seguidas no uso de áreas protegidas). A fraude só foi descoberta porque um funcionário da secretaria encarregado de redesenhar os mapas procurou o Ministério Público. Com isso, os planos de Salles foram rio abaixo. A tramitação do decreto com o plano de manejo foi suspensa e a área de proteção segue sem regramento. O ex-secretário vai recorrer.
Leandro Leme explica como se deu a fraude. “Na CTBio (um conselho com participação de entidades a que cabia as definições do plano de manejo), a Fiesp fez seus pleitos, entre eles a permissão da mineração em certas áreas. A Fundação Florestal não queria, alegando a fragilidade do sistema. A comissão achou por bem não acolher os pleitos. O próximo passo seria levar o que foi definido para aprovação no Consema (Conselho Estadual de Meio Ambiente). Mas fez-se um caminho por fora, com reuniões sem ata, por ordem do secretário Salles. Nessas reuniões, nas quais o tema eram os pedidos da Fiesp, foram mudados os textos da minuta e os mapas de zoneamento”.
O encarregado de fraudar os mapas, no entanto, resistiu a participar dos atos. “Ele disse:‘não posso mudar o trabalho da USP (uma equipe de técnicos da universidade traçou os mapas). Quando insistiram, ele fez legendas no mapa indicando as alterações. Mas recebeu a ordem de retirar todas as legendas. Então, pediu exoneração e veio ao Ministério Público.”
Denunciado, o então secretário afirmou, à época, que as mudanças não foram irregulares, por terem sido aprovadas pelo Consema, e que a CTBio é apenas um órgão consultivo. E admitiu que as alterações foram feitas a pedido da Fiesp.
Sobre uma das mudanças, Salles chegou a dar uma desculpa tão bizarra que o juiz Fausto Seabra estampou na sentença, sem esconder o espanto: “O foco do então secretário era a defesa da atividade econômica e, sob a ótica da mineração, como ele próprio disse, deslocar uma atividade para mais longe criaria mais problemas ambientais, como se não fosse possível coibir atividades predatórias aos ecossistemas em qualquer lugar”.
O juiz entendeu que alterações no plano de manejo precisariam ser tecnicamente justificadas e aprovadas pelo conselho gestor da unidade, o que não aconteceu . E que Salles descumpriu seu dever funcional ao não ter informardo, com transparência, sobre as mudanças que promoveu ao encaminhar a minuta de decreto ao Consema.
Quando recebeu a sentença, Salles já tinha sido afastado do cargo. Apesar disso, com as credenciais de ter sido fundador do movimento ‘Endireita Brasil’ e ter perdido três eleições, foi indicado para o ministério do Meio Ambiente. Na semana retrasada, fez sua primeira viagem à Amazônia. Na próxima semana, quem sabe aprenda sobre Chico Mendes.
Mudanças sob medida
Em Santana do Parnaíba, há uma fábrica dentro da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Tietê que produz derivados de papel – copos, cadernos, etc. A planta da fábrica está a menos de 200 metros das margens do rio Tietê. Um órgão técnico com a participação de instituições da sociedade civil e da secretaria estadual do Meio Ambiente (a CTBio) definiu que boa parte da área vizinha à fábrica e que margeia o rio, coberta de vegetação nativa, deveria ser considerada uma ZPF, sigla que implica em restrições a, por exemplo, aterros, alteamentos, construções industriais, desmatamentos etc… O motivo é serem áreas frágeis, sujeitas a inundações constantes e importantes para que o rio não sofra assoreamentos com consequências potencialmente graves.
Sob orientação do comando da secretaria, os mapas que constam do plano de manejo passaram a mostrar, em novembro de 2016, toda essa área dentro da ZRAP. Com isso, a empresa ficaria livre para, sob certas condições, ampliar suas instalações, derrubando a mata e levando risco aos rios e à população que vive às margens do Tietê, que ficaria mais sujeita a enchentes.
A empresa já foi autuada, em 2006, pela Cetesb, por funcionar sem seu licenciamento ambiental completo.
O caso foi semelhante em tudo – incluindo as datas, a mata nativa e a proximidade mínima do rio, mais especificamente de um tributário do Tietê – com a Jofege Pavimentação e Construção, de Barueri (SP).
No caso da Suzano, empresa de grande porte do ramo de papel e celulose, caracterizado pelo uso intensivo de água, três grandes áreas tiveram o zoneamento alterado. O plano de manejo as declarava áreas de interesse para a formação de corredores ecológicos, enquanto a prefeitura, segundo informações colhidas pelo MP-SP, pretendia construir conjuntos habitacionais, que estariam fatalmente sujeitos a inundações.
A EDK Mineração, empresa que extrai matérias-primas (dolomita e calcita) para a produção de cal e outras aplicações, foi outra empresa que teve áreas contíguas modificadas nos mapas, sob orientação da Fiesp e determinação da secretaria de Meio Ambiente.
Procurado, o Ministério do Meio Ambiente não se pronunciou. Ricardo Salles costuma negar ter cometido as irregularidades apontadas pelo Ministério Público de São Paulo.
Memória
“Chico Mendes faz parte da defesa do Brasil na defesa do meio ambiente. É história”, comentou o vice-presidente Hamilton Mourão sobre o desconhecimento do ministro Ricardo Salles sobre a trajetória do ambientalista.
Seringueiro, Chico criou, em Xapuri, o "empate", que consistia em proteger, com o corpo dos trabalhadores, a floresta, quando atacada por madeireiros e grileiros. Foi o articulador da ‘União dos Povos da Floresta’, unindo seringueiros, indígenas e trabalhadores rurais na defesa da preservação. Foi assassinado em 1988.
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