Por Beatriz Perez
Rio - O servidor federal Daniel Pinheiro, 35 anos, sempre se interessou por armas. Massó decidiu procurar um clube de tiro e fazer o curso básico quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente do país, em outubro de 2018. Entretanto, medidas anteriores à campanha armamentista de Bolsonaro já impulsionavam a procura pelo Certificado de Registro para Colecionador, Atirador e Caçador(CAC). Levantamento de O DIA apontou crescimento de 175% no primeiro trimestre deste ano em comparação ao mesmo período de 2017,ano em que o Exército editou uma norma permitindo o porte de armas para atiradores desportivos no governo Temer.
No primeiro trimestre de 2017, 4.347 novos atiradores receberam a certificação. Em 2019, o índice quase triplicou no mesmo período. Foram 11.960 novos registros emitidos entre janeiro a março deste ano. Mas o 'efeito Bolsonaro' ampliou a procura por clubes de tiro. Foi o caso de Daniel, citado no começo da reportagem."Eu apoiei o Bolsonaro. Já estava com a expectativa do decreto (que ampliou a posse de armas). Acredito que ainda teremos outras mudanças para facilitar a vida do atirador", projeta.
Durante o horário de almoço, ele frequenta o clube Colt 45, no Centro do Rio. E vai acompanhado pela mãe. O servidor fez o curso básico de tiros com a namorada em apenas um dia. "Demos 50 tiros. Ela adorou e também quer se filiar ao clube".
Apesar do decreto assinado por Bolsonaro em janeiro para ampliar a posse de armas no Brasil, os interessados buscam outro caminho: o Certificado de Registro (CR) para atiradores desportivos (CAC). Paulo Coutinho, um dos donos do Colt 45, acredita que os atiradores buscam esse tipo de registro para poder circular com a arma. "Com a posse, a arma só pode ficar dentro de casa ou da empresa. A procura maior aqui é pelo CR. Com ele, o atirador pode trafegar com as armas no dia a dia", compara.
O advogado criminalista Thiago Minagé confirma a tese. Ele explica que, quem tiver a posse e sair na rua armado, comete o crime de porte ilegal de armas. Já praticantes de tiro não precisam ter esse tipo de preocupação, já que têm o porte de trânsito para o deslocamento entre o clube e a residência desde 2017. "Antes, eles só podiam transitar com as peças desmuniciadas", explica.
Turmas lotadas
Paulo Coutinho viu as turmas do seu clube de tiro aumentarem em 70% desde a assinatura do decreto de Bolsonaro, em 15 de janeiro. Segundo ele, isso está relacionado à intensificação do debate sobre a cultura armamentista promovido pelo novo governo. "O brasileiro não conhece esse mundo das armas. O decreto foi uma publicidade".
Em 2018, o curso básico era oferecido três vezes por semana, com turmas de três pessoas. Agora, as aulas são de segunda a sábado, sempre com turmas cheias, com até dez alunos. "Sábado, dia mais concorrido da semana, fechamos a turma com 12", compara Coutinho.
Alunos têm perfil diversificado
Coutinho conta que o público é diversificado. "Temos advogados, pilotos de avião, empresários de diversos ramos e donas de casa que buscam uma proteção para família". Ele observa um aumento da procura feminina desde o ano passado.
É o caso de Pamela Ferreira, de 29 anos, estudante de perícia criminal. Ela sonha ser Policial Civil e quer agregar valor à formação. "Decidi fazer o curso básico e vou trazer outras três colegas comigo", conta. No curso de quatro horas, o aluno aprende sobre regras de segurança, manuseio, legislação e implicações legais pelo mau uso do armamento. "Se você está com uma arma na cintura, nunca deve estar em local com aglomeração. Se a finalidade é o tiro esportivo, o recomendado é que frequente o clube e vá direto pra casa e evite parar para almoçar para não ficar exposto, com arma na cintura e acervo na mala do carro", exemplifica o instrutor João Bercle.
Café da marca 'Bolsomito' na copa do clube
A recepção do clube é decorada com munições e café da marca 'Bolsomito' para ser degustado na copa, onde os alunos só são orientados a reagir se forem abordados por assaltantes. Mas a melhor opção, alerta o instrutor João Bercle, é fugir, se possível. A ideia é desestimular 'justiceiros' e reforçar as consequências legais caso atirem fora do clube.
"No Brasil, um cidadão de bem, com tudo registrado, pode reagir a um assalto. O bandido foge e o cidadão responde a um processo por disparo de arma de fogo em via pública e fica com a arma apreendida e CR suspenso", explica.
Atirador desde 1988, Sergio Haddad, 60 anos, traça um cenário hipotético: "Uma mulher está sendo assaltada. Você atira no cara. Aí, ela fala: 'poxa, não precisava matar'. E você ainda responde a processo". Um colega concordou: "Se não é comigo, fico na minha. Não sou herói". Haddad brinca que, apesar do sobrenome, votou em Bolsonaro. E espera que o porte seja estendido a praticantes de tiro.
O presidente anunciou, em live no dia 18 de abril, que o governo prepara um conjunto de normas que vai alterar as regras de porte de armas de fogo para praças militares, colecionadores, caçadores e atiradores esportivos. Sem detalhar o decreto em elaboração, disse apenas que haverá novidades.
Atalho para se armar, apontam especialistas
Especialistas dizem que CAC é atalho para se armar. Eles também atribuem o aumento da procura à disseminação de informações entre armamentistas nas redes sociais.
"Também existe um movimento de pessoas que não conseguem permissão na Polícia Federal e tentam pelo Exército, que tem exigências diferentes. As pessoas tiram certificado de atirador para usar arma para a própria defesa", analisa Natália Pollachi, coordenadora do Instituto Sou de Paz. Ela explica, ainda, que a procura se intensificou com a portaria editada em 2017, após a permissão do porte no trajeto de casa para o clube de tiros. E que a fiscalização é insuficiente. "Virou um porte velado, que aumentou a procura pelo registro. Se a pessoa for pega com a arma municiada, poderá alegar que está indo ou voltando do clube", critica.
Vinicius Cavalcante, diretor da Associação Brasileira de Profissionais de Segurança, concorda que os brasileiros buscam o CAC para ter acesso às armas. Ele defende uma legislação que facilite o porte e a posse. "Se nós tivéssemos os interesses do cidadão atendidos, as pessoas não precisariam fingir que praticam tiro para poder ter o porte. O problema não são as armas, mas as mãos em que circulam", diz.
Para Paulo Storani, antropólogo e capitão veterano do Bope, a procura reflete o desejo das pessoas de terem arma. "As pessoas deixaram de usar o mercado irregular". Ele defende um endurecimento para educar a população. "Falta o agravamento de pena da arma usada de forma indevida, como em briga de vizinho e violência doméstica".