Protesto antirracista e contra Bolsonaro no Largo da Batata, em São Paulo - Filipe Araujo/Foto Publica
Protesto antirracista e contra Bolsonaro no Largo da Batata, em São PauloFilipe Araujo/Foto Publica
Por ESTADÃO CONTEÚDO
Enxergar é biológico. Ver é opção cultural. O Brasil descrito por Lilia Moritz Schwarcz, historiadora, antropóloga e autora de livros como Sobre o Autoritarismo Brasileiro e Lima Barreto: Triste Visionário, é o de heróis brancos, nunca negros, nunca femininos. É o Brasil que não vê quais deveriam ser seus monumentos e esculturas. É o Brasil que não vê: a morte de Marielle matou outro Brasil, com mais oportunidade. Um país que não vê que enquanto for tão racista não terá democracia. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

A minha pergunta inicial seria: você é contra ou a favor da retirada desses monumentos, dessas estátuas de escravocratas?

Mas não sei se é tão simples assim se posicionar de um lado ou de outro.

Eu acho que a questão é equivocada, que não se trata de ser contra ou a favor porque não se trata de abrir ou fechar um partido político que seja a favor ou contra esse tipo de manifestação. Eu sou a favor da reflexão em cima desse tipo de manifestação. Nesse sentido, eu sou contra e a favor.

Eu sou absolutamente a favor porque nós crescemos com uma historiografia que se chama de universal, mas que não é universal. É uma historiografia que se detém sobretudo nas conquistas e nos feitos das sociedades europeias e depois norte-americanas. Por que será que no Brasil, que foi colonizado por portugueses, mas também indígenas e várias Áfricas, vários africanos, não temos na nossa história uma referência a todas essas origens? Ou seja, não se fala das inúmeras Áfricas que chegaram ao Brasil, as tecnologias, as filosofias, as culturas materiais, as religiões que vieram nos navios negreiros. Os historiadores mostram que nas Américas, na América do Sul sobretudo, a população respondia, em termos de quantidade, à população da Península Ibérica no mesmo contexto. Mas, mesmo assim, falamos de descobrimento. O que isso revela? Revela uma narrativa histórica muito marcada por uma só experiência. Por que será que todos os nossos heróis são homens e brancos. Quase não temos mulheres, quase não temos heróis negros. Por que será que nós não criamos uma imaginação negra? Então, voltando a sua pergunta, por que ela está equivocada? Porque o que a gente não percebe é que esses monumentos, essas esculturas, reforçam uma imaginação somente ocidental. Mais ainda: uma imaginação, por vezes, muito violenta. Nós apaziguamos a violência. Eu sou absolutamente a favor da retomada crítica desses espaços simbólicos porque eu sou historiadora e antropóloga e acredito piamente na eficácia simbólica para o poder político. Ou seja, não se trata de ingenuamente contar com uma escultura de um traficante de escravos. Se trata de glorificar e enaltecer essa figura. De lembrar para esquecer. O que você lembra? Que ele foi do parlamento - estou me referindo ao caso mais gritante no momento, inglês. E que se esquece? Que ele traficou vidas humanas durante muito tempo. E também, o que esquece? Que a Inglaterra, a Grã-Bretanha, não era só essa grande civilização. Ela compactou com a barbárie. Então, esse é o meu a favor. Penso sim que recuperar esses espaços simbólicos é um ato muito significativo. Como nós vamos recuperar é outra questão. Eu, particularmente, acho que não é o caso de destruir apenas. Eu faria, por exemplo, um memorial crítico da escravidão, um memorial crítico da colonização. Ou então, colocaria ao lado dessas esculturas outras que tensionem esses regimes de verdade. Esculturas que digam o oposto sobre essa pessoa. Existem muitos mecanismos de fazê-lo, mas, por vezes, é preciso começar radicalizando para que a sociedade preste atenção. Porque o que acontece no nosso cotidiano, nós não vemos. Existe uma diferença muito grande entre enxergar e ver. Enxergar é uma faculdade biológica, ver é uma opção cultural. Eu penso que os brasileiros e de uma maneira geral a civilização ocidental enxerga, não vê. É isso que fazemos diante dessas esculturas, desses monumentos.

Eu li no The New York Times uma entrevista do professor (do John Jay College of Criminal Justice) Erin Thompson. Ele diz que a queda das estátuas é um sinal de que o que está em questão não é apenas o nosso futuro, mas também o passado como nação, sociedade e mundo. Nesse sentido, eu pergunto se isso é sinal de que precisa haver uma ruptura. Você entende que é um olhar para o passado tudo isso que está acontecendo a partir do Black Lives Matter?

Eu digo lá no meu livro Sobre o Autoritarismo (Sobre o Autoritarismo Brasileiro, Companhia das Letras, 2019) que o nosso presente está cheio de passado. Ou seja, que nós vivemos entre fantasmas. Disse o poeta Carlos Drummond de Andrade que toda história é remorso. O que nós fazemos com isso? Nós silenciamos os nossos fantasmas, não queremos viver com eles. O que nós estamos vivendo, não só nesse momento, também provocado pelo Black Lives Matter, mas não só, é um movimento de revisão da história. Isso não quer dizer apagamento da história. Isso quer dizer que deveríamos falar de ‘histórias’ no plural. A história é assim: o historiador Jacques Le Goff falou, e também o historiador (Achille) Mbembe, que a história é feita a partir das nossas perguntas. Por que agora vamos viver este momento em que a história se detém sobre direitos civis? Porque essa é uma linguagem que vai nos socializando. Então, um documento nunca diz nada para um historiador. Um documento só diz a partir das perguntas que nós fizemos a ele. Essas perguntas têm a ver com os tempos que nós presenciamos. Os arquivos da escravidão são violentos, são arquivos silenciosos e o que está acontecendo agora no Brasil e em outros países? Nós voltamos a esses arquivos coloniais e fazemos outras perguntas a eles e com isso nós achamos outros personagens, outras realidades. Descobrimos tantas insurreições, rebeliões, tantos atos. Não que eles não estivessem lá, mas nós precisamos fazer outras perguntas para encontrar um projeto de história que seja mais amplo, mais generoso e mais plural.

Você escreveu com Flávio Gomes na introdução do Dicionário da Escravidão e Liberdade (Companhia das Letras, 2018) que projetando um futuro moderno se inventava um passado distante. Eu queria perguntar o seguinte: o quanto da Lei Áurea, que vocês mesmo escrevem que foi breve e sem inclusão social, você acha que contribui para um racismo estrutural hoje no Brasil?

O Brasil não foi apenas o último país a abolir a escravidão mercantil, mas foi também aquele que recebeu o maior número de escravizados e escravizadas. Dos 12 milhões de africanos e africanas que deixaram compulsoriamente o continente africano, hoje se diz que 10 milhões desembarcaram nas Américas e no Caribe. Desses, 4,8 milhões tinham como destino final o Brasil. Nós tivemos, diferentemente de outros países escravocratas, escravidão em todo o nosso território. Isso fez da escravidão mercantil mais do que uma força de trabalho, fez da escravidão mercantil uma espécie de linguagem social. E essa linguagem traz muitas consequências para nós. Eu entendo sua pergunta, que é excelente, mas eu não acho que a gente tem que dizer que tudo é culpa da Princesa Isabel. Fizemos uma lei muito curta e muito conservadora, uma lei que tinha uma intenção política de dar à Isabel um terceiro reinado, que acabou não acontecendo. Mas o fato é que na época existiam outros projetos correndo muito mais inclusivos, que previam ressarcimentos, que previam trabalho, que previam educação, mas a nossa lei saiu curta, saiu muito breve e saiu muito conservadora: ‘Não existem mais escravos no Brasil’. Quais são os problemas disso? Primeiro, nós divulgamos a ideia de que a Princesa Isabel nos deu a liberdade. A pergunta é a seguinte: alguém pode dar a liberdade uma vez que esse é um direito de toda a humanidade? Ninguém pode lhe dar isso. Esse foi um processo de luta, um processo que teve muito ativismo negro e a Lei Áurea foi apenas o ponto final. Então, o que acontece é que a Lei Áurea tem um papel nesse nosso racismo estrutural e institucional, este é um legado pesado que nós temos. Mas sua questão é muito boa porque não dá para dizer que é tudo culpa do passado porque, se não, nós fazemos a coisa que nós mais gostamos, ou seja, nós nos aliviamos da nossa culpa. E não é coisa do passado, ela é coisa do nosso presente porque no momento em que eu e você conversamos aqui o Brasil pratica um racismo estrutural e institucional. Ele é estrutural porque está na base da nossa sociedade. Nos dados sobre emprego, nos dados sobre subemprego, nos dados da saúde - na atual pandemia nós já temos dados mostrando que são as populações negras as que estão sendo as mais afetadas. É estrutural porque nós nos acostumamos a ir nos espaços sociais e não convivermos com as pessoas negras, nós não temos uma lei do Apartheid, mas na nossa prática vivemos em cidades divididas. O racismo também é institucional porque nós não vemos pretos e pardos, que segundo categorias do IBGE correspondem a quase 56% da nossa população, em posições de mando, quase não vemos negros e negras na indústria da moda, quase não vemos negros e negras nas nossas esculturas e monumentos públicos, então, isso é um racismo institucional. Ele naturaliza e faz com que as pessoas enxerguem, mas não possam ver.

Você fala que o racismo é uma questão presente. E tivemos, nos Estados Unidos, uma ruptura. No Brasil, como você acha que pode se dar essa ruptura? Traumática, no sentido de violenta, ou a partir do crescimento da sociedade para mudar esse presente?

Não é de hoje que estamos praticando um genocídio da população negra, jovem e que vive nas nossas periferias. Há quem pergunte assim: por que será que nos Estados Unidos, que têm uma população negra que corresponde de 11% a 12%, um evento como esse do George Floyd causa muito mais comoção do que aqui no Brasil? Eu acho que mais uma vez a pergunta está errada. A questão é que não é que a população negra no Brasil não se manifesta, mas se a gente pensar, a primeira revolução republicana, que foi a Revolta da Vacina de 1904, já era uma revolta negra contra as medidas autoritárias da república. A pergunta certa seria: por que será que a sociedade brasileira, e a mídia brasileira, de uma forma geral, não cobrem esses eventos com a devida responsabilidade? De novo é uma questão de cegueira cultural. Porque nos Estados Unidos, o que acontece, essa linguagem dos direitos civis, é um ganho do século 20. Democracia é sim projeto inconcluso, mas é certo que nós só chegamos nessa linguagem dos direitos civis como nação no final da década de 1970. Então, eu acho que o que está acontecendo aqui no Brasil, no mundo também, é essa ideia de prestar atenção às nossas invisibilidades, prestar atenção para os nossos tantos silêncios. E os silêncios em relação às questões raciais são silêncios muito profundos. O que é a branquitude, e eu falo como branca, é o privilégio de não ser parado pela polícia, é o privilégio de frequentar o restaurante que quiser sem que as pessoas fiquem olhando, é uma política de privilégios e ela será mantida se as elites não quiserem ter atitudes antirracistas. Não é possível prever se teremos uma convulsão social, se teremos um aprimoramento da nossa cidadania, mas com os ativismos negros que eu convivo não me parece que a posição é bélica, a posição é de construir aliados. Na minha opinião o que a sociedade branca pode fazer: primeiro, mais do que dizer ‘eu não sou racista’, prestar atenção e dizer eu quero ser antirracista. E abrir espaço nas redações de jornais para mais editores negros e prepará-los; abrir espaço nas universidades para mais negros não só na graduação, mas na pós-graduação; abrir espaço nas empresas, nos nossos consultórios. Se a sociedade brasileira se mobilizar, nesse sentido, quem sabe nós teremos um aprimoramento da nossa sociabilidade, e não exatamente uma guerra. Mas muitas vezes é preciso enfrentar, tomar atos para que as pessoas saiam da sua posição de passividade. É preciso que a sociedade brasileira - essa sociedade que está vivendo uma crise que é social, que é política, que é econômica e que é moral, na minha opinião, como historiadora, nunca vista antes - entenda também, e se pudesse eu grifava o também, que nós não teremos uma democracia enquanto continuarmos tão racistas. Racismo não funciona com democracia.

Eu vou citar uma frase do Lima Barreto e gostaria que você fizesse uma reflexão do momento a partir dela. ‘Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou ’

Nesse momento nós estamos vivendo uma pandemia que pegou o Brasil de jeito, mas essa questão do racismo, de tantos ‘João Pedros’, de tantas ‘Ághatas’, de tantos meninos Miguel, de tantas Marielles, precisa entrar na nossa agenda urgentemente. Quando Marielle morreu, eu penso que um sonho de Brasil, um sonho de Brasil mais cidadão, mais generoso, morreu com ela. Por que eu digo isso? Porque Marielle simbolizava um Brasil que conseguia incluir. Quando Marielle morre e nós ficamos tanto tempo sem saber, e continuamos sem saber quem mandou matar Marielle, isso fala da nossa amnésia coletiva. Isso fala muito da nossa forma de lidar com o racismo tentando escondê-lo, isso fala muito de uma perspectiva brasileira, de que todos os brasileiros dizem que são contra o racismo, mas ninguém se diz racista. Então, enquanto nós não assumirmos esse lugar antirracista essa agenda vai continuar urgente e ela não pode mais ser postergada para um futuro indeterminado.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.