Publicado 23/11/2021 18:32 | Atualizado 23/11/2021 18:33
São Paulo - Para nove em cada dez brasileiros, o local de maior risco de assassinato para as mulheres é dentro de casa, por um atual ou ex-parceiro, aponta a pesquisa 'Percepções da população brasileira sobre feminicídio', realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva e divulgada nesta terça-feira (23). A diretora do instituto, Jacira Melo, acredita que o setor de segurança pública 'continua devendo proteção às mulheres que são ameaçadas de feminicídio'.
Segundo a pesquisa, 57% dos brasileiros conhecem alguma mulher que foi vítima de ameaça de morte pelo atual ou ex-parceiro, o que equivale a 91,2 milhões de pessoas. Outros 41% conhecem um homem que já ameaçou de morte a atual ou ex-parceira, o equivalente a 65,6 milhões de pessoas, enquanto 37% conhecem uma mulher que sofreu tentativa ou foi vítima de feminicídio íntimo, aquele praticado por um atual ou ex-parceiro.
Participaram da pesquisa 1.503 pessoas (1.001 mulheres e 502 homens), com 18 anos de idade ou mais, entre 22 de setembro e 6 de outubro de 2021 em todo o País. A margem de erro é de 2,5 pontos percentuais.
Em entrevista ao Estadão, a especialista avalia a Lei do Feminicídio, que completou seis anos neste ano, analisa as falhas do setor da segurança pública com a proteção das mulheres e os desafios do enfrentamento à violência doméstica no País.
O que essa pesquisa nos revela sobre a situação da mulher hoje no País?
A pesquisa revela um quadro dramático. Tem algo muito importante: o feminicídio já está no radar da população, que entende que o feminicídio é algo gravíssimo e que ocorre de maneira brutal no País. 57% da população conhece uma mulher que já foi vítima de ameaça ou de morte pelo parceiro ou ex-parceiro, é um número bastante significativo. A gente captou informações muito complexas. A maioria, 90% dos brasileiros, considera que o local de maior risco de assassinato para as mulheres é dentro de casa por um parceiro ou ex-parceiro, e isso coincide com os dados de segurança pública. Uma parte significativa das mulheres é assassinada por um parceiro ou ex-parceiro dentro da casa.
Segundo a pesquisa, para 9 em cada 10, o local de maior risco de assassinato de mulheres é dentro de casa. Como acessar esse lugar privado da casa?
A gente que acompanha essa trajetória das mulheres vê que é muito complexo para as mulheres entender que aquela relação, aqueles desentendimentos, muitas vezes violência doméstica, aquela ameça vai se concretizar. É difícil isso. É uma situação muito complexa. A motivação do assassinato de uma mulher por um parceiro ou ex-parceiro é o desprezo e o sentimento de perda de controle sobre a mulher que decide sair da relação. Tem uma lógica masculina de controle, de fazer com que essa mulher aceito todo tipo de violência, e quando essa mulher toma a decisão de sair dessa relação, vem essa máxima (para o homem) de perda de controle e ele decide agredi-la fortemente ou até cometer o assassinato.
A pesquisa mostra que 65% consideram que o homem que comete feminicídio é o responsável pelo crime e deve ser punido. Ainda assim, 1 em cada 3 culpa a mulher pelo feminicídio: 30% culpam ambos (homem e mulher) e 3% culpam a própria mulher. Por que a população ainda tem essa percepção de que a culpa pode ser da mulher?
A gente ainda tem uma parcela pequena da população que tem essa visão de que a mulher foi assassinada porque ela rompeu com a relação, porque saiu de casa e deixou esse seu parceiro transtornado. Na verdade, não é bem assim. O assassinato de mulheres por parceiro ou ex-parceiro não pode ser observado como um ato isolado. Esse assassinato não é um crime passional, essa morte não é fruto de paixão. No movimento de mulheres criamos uma máxima: 'quem ama não mata'. Quem não aceita o fim da relação e mata, muitas vezes com requinte de crueldade, tem que ser responsabilizado. É um crime medonho, é um crime de ódio.
A Lei do Feminicídio fez seis anos neste ano. Como você avalia seu desempenho?
O Brasil foi um dos primeiros países a ter a Lei de Feminicídio, foi o primeiro País a ter uma lei de violência contra as mulheres, que é a Lei Maria da Penha. No campo Legislativo, até por pressões do movimento social de mulheres, o Brasil tem uma legislação avançada. A Lei do Feminicídio é muito completa, uma lei que foi bastante debatida com especialistas e com promotorias e defensorias públicas. O que acontece com essa lei é a não observância dela ou o não cumprimento, em especial pelo campo da segurança pública. As mulheres precisam de mais segurança e ser recebidas com mais atenção. A lei tem até um item que prevê campanhas educativas e nós precisamos delas no Brasil, não só com os parceiros agressores ou que ameaçam suas companheiras, mas campanhas para que haja uma mudança de mentalidade masculina, de não agressão e de não ameaça, e feminina, para que elas busquem ajuda o mais rápido possível quando começam essas ameaças. As mulheres precisam acreditar, e é difícil acreditar que seu parceiro, o pai dos seus filhos e que convive com você vai cometer um assassinato. É preciso um melhor treinamento e mais sensibilidade dos agentes de segurança pública e mais espaço de acolhimento para elas. Nós temos uma lei avançada, mas não temos mecanismos condizentes com a tragédia que é o feminicídio no Brasil.
A percepção de impunidade é alta: apenas 25% acreditam que a maioria dos homens que ameaçam suas (ex-)parceiras são devidamente punidos na maior parte das vezes e 27%, que há punição para quem tenta ou pratica feminicídio. Quais são os maiores desafios no enfrentamento da violência contra a mulher?
O maior desafio no Brasil é encontrar um acolhimento e um atendimento de qualidade no campo da segurança pública. Nós temos relatos de mulheres no Brasil todo que, quando chegam numa delegacia de polícia e são atendidas por um delegado ou um investigador, muitas vezes são muito mal recebidas e mal atendidas. (Eles veem com uma ideia de que) entre tantas coisas importantes para se tratar nesse País, tem casos de mulheres que veem aqui com questão de violência contra a mulher e ameaça pelos seus parceiros. São pouquíssimas as delegacias que atendem apenas mulheres no País, são menos de 400 no território nacional Tem algo complicadíssimo com a segurança pública em que as mulheres não são acolhidas com seriedade e não recebem as orientações e muito menos esse parceiro que está ameaçando é interpelado. As mulheres vão e dizem que estão sendo perseguidas e ameaçadas e, muitas vezes, não conseguem sequer fazer um boletim de ocorrência.
Um em cada seis brasileiras já foi vítima de tentativa de feminicídio íntimo, mas menos da metade, 46%, ouviu falar ou sabe o significado. O que se caracteriza como feminicídio íntimo?
O feminicídio íntimo é o crime que foi realizado por um parceiro ou ex-parceiro, que tem uma relação de intimidade com essa vítima e sabe tudo sobre ela: onde mora, onde trabalha, os hábitos dela. (O agressor) tem muito controle sobre a situação. Isso contribui muitíssimo para que essas mulheres venham a ser assassinadas de maneira absurda. Muitas terminam uma relação e são assassinadas ao sair do trabalho, porque esse ex-parceiro sabe tudo sobre ela. Algumas empresas no Brasil implementaram programas de apoio às mulheres que são funcionárias e estão sofrendo violência e ameaça e rapidamente conseguem transferi-las para outro município, para outro estado, com garantia de emprego, levando os filhos. Mas são pouquíssimas empresas que, como Avon, Magazine Luiza, Natura, estão trabalhando com equipes preparadas para ter essa atenção com as mulheres. O Brasil ainda continua devendo proteção às mulheres que são ameaçadas de feminicídio. O Brasil ainda continua devendo uma campanha pública, no rádio, na televisão, nas mídias sociais de sensibilização da população em relação a esse tema, em especial campanhas que venham interpelar os homens.
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