Na sua coluna em “O Globo”, ela chama a atenção para o fato de que, frente à possível deterioração do progresso socioeconômico no mundo, o relatório propõe dar prioridade a políticas sociais e ao pleno emprego. Caso isto não ocorra, sustenta a ONU, sofremos o risco de graves retrocessos, com consequências que vão muito além dos ajustes de curto prazo.
Estamos ainda longe do fim de flagelos como a pobreza, a desigualdade e a instabilidade política. Afinal, como mostra o relatório da ONU, apesar de todos os avanços na redução da pobreza, cerca de 1,5 bilhões de pessoas vivem perto da chamada pobreza multidimensional — que implica viver com recursos monetários abaixo da subsistência, além de outras privações típicas da pobreza extrema. Mas, até recentemente, nos acostumamos a pensar que o mundo estava num caminho seguro para a superação dessa situação — o que parecia se confirmar pelo estágio de desenvolvimento alcançado por algumas nações, e pela enorme redução da pobreza absoluta em países em desenvolvimento, especialmente nas grandes economias emergentes.
O sentido do progresso iminente criou certo consenso sobre as prioridades da política econômica. Por exemplo, nas nações com amplas redes de proteção social, as retrações econômicas eram vistas como situações provisórias, que não poderiam afetar trajetórias de longo prazo de crescimento. Para nações mais pobres, o importante seria garantir as condições de alto crescimento de longo prazo. Em ambos os casos, nos acostumados a pensar que o importante seria garantir a sustentabilidade destas trajetórias — mantendo fundamentos econômicos sólidos, resguardando os ambientes de negócios e ampliando a abertura econômica.
No relatório de desenvolvimento humano recém-publicado, o quadro mostrado levanta importantes interrogações. Apesar da incipiente recuperação nas economias avançadas, e da resiliência no crescimento de algumas economias emergentes, vêm ocorrendo dramáticas desacelerações nos chamados indicadores de desenvolvimento humano. Por detrás disso está o fato de a economia global passar pela sua pior crise de desemprego desde as primeiras décadas do século passado — e que esta crise, que parece mais duradoura do que até os mais pessimistas poderiam ter antecipado, vem afetando especialmente os jovens.
Mesmo para as nações desenvolvidas, essa situação coloca o futuro em risco. Afinal, como mostra o relatório, a outra face da crise do desemprego é a deterioração das condições de trabalho a que estão expostos mesmo aqueles que, com muita sorte, conseguem emprego. Nos Estados Unidos, por exemplo, a grande maioria dos novos postos de trabalho para os jovens tem remuneração mais baixa, menor estabilidade e menos direitos. E essa é uma situação comum mesmo para aqueles com melhor formação acadêmica, que deveriam estar sendo preparados pelo mercado de trabalho para assumir, em dez ou vinte anos, lideranças econômicas e políticas. Em suma: se o principal capital de uma sociedade é o humano, muitas nações desenvolvidas podem estar rifando o seu futuro, caso não cuidem da crescente vulnerabilidade a que se expõe sua juventude.
Para as economias em desenvolvimento, a situação é ainda mais dramática. Afinal, como nos lembra o relatório, cerca de 80% da população global não possui rede de proteção social adequada e cerca da metade de todos os trabalhadores (aproximadamente 1,5 bilhão) possuem emprego informal ou precário. Um aumento do desemprego representa simplesmente um salto para o total desamparo, com consequência não só para os adultos desempregados, mas para as famílias por eles sustentadas. Como ainda temos 12% da população total convivendo com a fome crônica, qual seria a consequência de uma deterioração, ainda que temporária, da situação atual?
Com esse quadro, o relatório não se restringe a simplesmente abandonar o discurso, cada vez mais em voga nas instituições multilaterais, da necessidade de dar centralidade a ajustes e ao “equilíbrio-já” dos fundamentos econômicos. A ONU propõe, ao contrário, uma agenda de políticas para evitar a todo custo qualquer retrocesso no quadro socioeconômico — fortalecendo a ampliação de serviços básicos e de redes de proteção social. Reafirma, também, uma velha máxima entre economistas do pós-guerra: a de que o objetivo de pleno emprego tem de ser central na definição das distintas esferas de política econômica.
Como Flávia Oliveira bem nota, é impossível ler o relatório sem pensar sobre a situação peculiar do Brasil: temos um alto nível de emprego e estamos em uma trajetória de redução da pobreza e desigualdade. O relatório da ONU indica que o nosso índice de desenvolvimento humano vem melhorando, e, portanto, a vulnerabilidade socioeconômica tem caído significativamente — e, como a ministra Tereza Campello, corretamente, argumentou, caso o relatório tivesse considerado os dados mais recentes, os avanços apresentados seriam ainda mais impressionantes.
Temos que realizar e implementar mudanças e reformas para seguir a trajetória de avanços sociais. Mas, para evitar que caiamos na armadilha em que se encontra parte significativa do mundo, esses ajustes nunca devem perder de vista o objetivo central das políticas governamentais: garantir o emprego elevado, e continuar as melhorias das condições de vida das populações — especialmente das que, ainda hoje, são as mais vulneráveis.