Emanuelle em uma de suas postagens no Instagram - Reprodução instagram
Emanuelle em uma de suas postagens no InstagramReprodução instagram
Por Leonardo Maia

Campos - A face de uma mulher que chora, silenciada por uma mão masculina que lhe cobre a boca, ilustra a sala escolhida pela delegada Ana Paula, titular da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) de Campos, para abordar mais um caso de agressão. O pôster pretende estimular as mulheres a denunciar abusos e ataques, a não se calar diante da violência. Porém, a mensagem parece não encontrar eco no próprio local.

Quando Emanuelle Porto, 25 anos, precisou do suporte da delegacia para denunciar o ex-marido, Roger Freitas, encontrou “desdém” e “nenhuma solidariedade”, em suas palavras.

DJ Moranes em cartaz de divulgação de uma de suas festas - Reprodução de internet

A repercussão na cidade foi imediata, massificada pelas redes sociais e por Roger ser conhecido na cidade por seu trabalho como DJ Moranes. E o que se seguiu à exposição do crime indica que não se trata de uma percepção exclusiva da estudante de psicologia. O episódio provocou uma enxurrada de mensagens de apoio a Emanuelle, com inúmeras mulheres tomando suas redes sociais para relatar experiências semelhantes ao buscar a Deam para denunciar abusos.

Negligência, coação, intimidação, descrédito, assédio, desestímulo, medo, desespero, descaso, são algumas das palavras usadas por várias vítimas para descrever o tratamento recebido na Deam, e publicados pelo coletivo feminista Nós por Nós em sua página no Instagram, como consequência do ataque a Emanuelle.

"Do jeito que falam, parece que a Deam é o pior lugar do mundo para as mulheres procurarem ajuda", lamenta a delegada.

É justamente esse o sentimento exposto por um dos comentários: “eu odeio aquele lugar (Deam). O lugar menos acolhedor para uma mulher”.

“Achei um atendimento despreparado e negligente, sem empatia pela minha dor e sofrimento, ainda mais vindo de inspetoras mulheres”, reforça Emanuelle. “Uma das inspetoras disse ‘só isso?’, enquanto eu mostrava os hematomas e lesões”.

A inspetora é Maria Isabel Tavares, a mesma que achou por bem deixar um comentário em uma postagem do DJ Moranes em resposta à revolta geral ali manifestada. “Deixe a vida alheia em paz galera! Gente chata!”.

Ana Paula não respondeu claramente se Maria Isabel foi ou seria advertida ou punida de alguma forma.

Emanuelle foi agredida na manhã do dia 31 de março, um domingo, quando o ex-marido, vindo de sua festa de aniversário, entrou no antigo apartamento em que moravam e que ficou com a jovem e o filho de dois anos depois da separação. A polícia foi chamada e fez o flagrante, encaminhando a jovem para o exame de corpo de delito. No IML, o perito constatou lesões leves e, diante das queixas da vítima de dores fortes no ouvido, sugeriu que procurasse um otorrino. Na segunda-feira, 1º de abril, a estudante teve constatada a perfuração do tímpano esquerdo no Hospital Ferreira Machado.

O caso já produzia grande rumor em Campos. Mas a indignação pública ganhou vulto quando a Deam emitiu nota, na manhã de terça-feira, 2 de abril, em que disse que “deve ser ressaltado que as lesões sofridas pela vítima foram de natureza leve (não procedendo a informação de que ela teve o tímpano perfurado)”.

A delegada alega que sua intenção era frear a crescente mobilização das redes, com pessoas ameaçando Moranes em seus canais virtuais. O que soava ruim se tornou insustentável quando o hospital divulgou nota oficial confirmando a gravidade do ferimento de Emanuelle. No texto, os médicos destacaram a possível necessidade de uma cirurgia, caso o tecido rompido não se regenere, e não descartaram a possibilidade de dano irreversível à audição da moça.

“Eu me baseei no laudo do IML. Minha intenção não foi desmentir a vítima, foi desmentir o burburinho”, argumenta a titular da Deam.

“A sensação que dá é de arrependimento e perda de tempo. E nenhuma mulher deve pensar dessa forma. A Deam existe para acolher as mulheres e dar a elas todo o suporte e o melhor atendimento possível”, critica a estudante, que está abrigada na casa dos pais com o filho.

Ana Paula acha que existe uma percepção equivocada do trabalho de sua delegacia, fruto da caráter delicado dos casos, do estado emocional das vítimas e das limitações estruturais e de pessoal do local. De acordo com a policial, as inspetoras garantiram que seguiram o procedimento padrão. “Por mais que a gente faça o nosso melhor, sempre haverá gente insatisfeita”. E continua: “Reconheço cada erro, não desmereço nenhum relato das redes sociais, mesmo não tendo conhecimento desses casos”, comenta a delegada, que frisa o esforço de sua equipe e destaca episódios em que seus agentes até se anteciparam ao crime, mas “você não vê ninguém vir aqui para elogiar”.

A Deam de Campos trabalha com 16 policiais, 11 mulheres e 5 homens, quando o ideal na estimativa da própria delegacia seria algo em torno de 25 agentes. Apesar disso, o número de ocorrências tem crescido. No primeiro trimestre deste ano foram 335 registros no total, contra 215 no ano passado e 133 em 2017.

Esse cenário, no entanto, não explica o tratamento recebido pelas vítimas da violência que buscam a Deam, na visão de Jéssica Queiroz, administradora especializada em políticas públicas e integrante do Conselho Municipal dos Diretos da Mulher de Campos, instituição independente que reúne representantes do poder público, do judiciário e da sociedade civil.

“Além da falta de preparo, a reclamação mais grave e recorrente que ouvimos das mulheres é a intimidação e o desestímulo”, destaca Jéssica Queiroz. "Os policiais insistem que o agressor pode ser preso, que elas também podem ser processadas porque arranharam ou puxaram o cabelo dele enquanto se defendiam, que os filhos pequenos podem ser obrigados a depor. Diante disso, muitas desistem de prestar queixa".

“Em muitas situações, os policiais fazem questão de alertar que a punição ao acusado não vai passar de uma cesta básica e questionam se elas realmente querem levar o caso adiante”, reforça Conceição Gama, psicóloga e também integrante do Conselho da Mulher.

A delegada Ana Paula já participou de reuniões do Conselho, para ouvir as reclamações e sugestões de como melhorar a relação entre a delegacia e a comunidade. Segundo as representantes da entidade, não se viu melhora efetiva. “Mas é importante citar que a Deam não é o único problema. O poder público de uma maneira geral parece pouco interessado em resolver isso”, diz Mariana de Freitas, comunicadora, outra participante do grupo.

O atendimento da Deam é apenas o primeiro obstáculo de uma via crucis que parece desenhada para desencorajar as mulheres a denunciar os abusos sofridos.

“Falta uma rede de acolhimento mais bem estruturada. Depois do registro do crime, as mulheres precisam de suporte para lidar com as consequências físicas e emocionais”, ressalta Elisa Peralva, psicóloga e coordenadora da Rede de Saúde Mental do município, ligada à Secretaria de Saúde de Campos.

Elisa também participa do Conselho da Mulher, e busca organizar ações concretas para mitigar esses problemas. A ideia é estabelecer um protocolo de atendimento e encaminhamento desses casos, com capacitação de pessoal e processos específicos para tratar da violência contra a mulher.

“Hoje, os formulários dos hospitais para registrar os casos de agressão são os mesmos para todo mundo, seja um idoso, uma criança ou uma mulher”.

Outra frente a ser abordada é a subnotificação, frisa Elisa. “A Deam não nos notifica de todos as denúncias que chegam lá, mas nem mesmo as unidades de saúde fazem isso. Tanto a rede de saúde pública quanto a privada precisam ter normas e métodos organizados para nos repassar todos esses números da violência doméstica, do contrário fica muito difícil planejar políticas públicas eficientes”.

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