O prazo anterior terminaria no dia 1º de outubro - Marcello Casal Jr/Agência Brasil
O prazo anterior terminaria no dia 1º de outubroMarcello Casal Jr/Agência Brasil
Por Leonardo Maia
Campos — A pandemia do coronavírus paralisou o mundo, deixou quase todos os setores da sociedade num estado de hibernação inquieta. Uma das atividades que têm sofrido grande impacto e afetam quase que integralmente a população é o ensino. Com o fechamento de escolas e instituições de nível superior, alunos, professores e gestores escolares enfrentam uma série de desafios e dilemas na tentativa de manter os estudos em meio à ameaça da covid-19, à ansiedade provocada pelo isolamento, e às dúvidas quanto ao futuro, em particular, quanto à realização do Enem.
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“Estou bem ansiosa, estava esperando o Sisu no meio do ano, e o próprio Enem. Agora está tudo em suspenso, adiado e isso causa uma angústia muito grande”, comenta a estudante campista Tamíris Corrêa, de 18 anos, que faz cursinho para tentar o vestibular para direito pela segunda vez. “Eu tinha muito expectativa de passar no ano passado, e já senti um baque por não ter conseguido. E o ano pode ser todo perdido de novo”.
Tamíris sente falta da interação com os professores e os colegas, que ajuda a lidar com o estresse dos estudos - Arquivo pessoal
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Todas essas questões se somam às dificuldades de adaptação ao ensino a distância (EAD) e às tecnologias que ele exige. Isso quando estudante, professor e instituição têm acesso às ferramentas necessárias para isso, o que não é o caso para uma parcela considerável deles, especialmente da rede pública.
“Não tenho computador, uso o celular para assistir às aulas, com uma internet razoável, mas às vezes falha”, conta Hugo do Carmo Silva, estudante da Escola Técnica Estadual João Barcelos Martins, em Campos.
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O estudante secundarista Hugo do Carmo Silva, de Ururaí, não tem computador e precisa acompanhar as aulas online pelo celular - Arquivo pessoal
Hugo, de 16 anos, mora em Ururaí, distrito de Campos, onde nem sempre o sinal de celular colabora.
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“Tem dias que trava tudo e não consigo assistir a aula nenhuma. Tenho colegas que não tem celular. Outros têm dificuldade para pagar o 4G”, comenta o adolescente, que faz o curso técnico de análises clínicas.
A professora de história Rafaela Machado verifica a mesma situação. Rafaela leciona no ensino fundamental no Colégio Estadual Atilano Chrisóstomo, em Saturnino Braga, na Baixada Campista.
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“Um aluno não estava fazendo as tarefas. Fui ver e descobri que a família teve de optar entre comprar remédios para a avó doente ou colocar créditos no celular”, relata Rafaela, que também dá aulas para o ensino médio no Colégio Alpha, umas das principais escolas particulares de Campos. Ela conhece bem as duas realidades.
A professora de história Rafaela Machado destaca a baixa frequência dos alunos às aulas virtuais, por falta de acesso a tecnologias essenciais, como computadores e internet - Arquivo pessoal
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Como, então, fica o Enem nesse cenário? Seria viável realizar o Exame Nacional com disparidades tão gritantes sem acirrar ainda mais a desigualdade no acesso ao ensino superior no país?
"Certamente o Enem vai intensificar esse abismo, se for feito este ano”, diz Elda Moura, professora de história, que também trabalha nas redes pública e particular. “Há muitos alunos que estão sem poder acompanhar as aulas ou mesmo fazer as atividades e provas. Acho que o adiamento até dezembro não vai adiantar”.
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Elda, por sinal, também chama a atenção para um microcosmos praticamente ignorado nesse universo de complicações. O acesso da população carcerária ao ensino. Elda trabalha na escola Teodoro Sampaio, que funciona dentro do presídio Carlos Tinoco. Para os detentos, não existe nem a possibilidade do EAD.
“Estamos preparando o material para quando as aulas voltarem para eles, mas ninguém sabe quando isso vai ocorrer. Muita gente ignora, mas muitos presos e menores infratores se esforçam para enfrentar o Enem, mesmo com todas as dificuldades. Nem essa chance terão”, lamenta a professora de história.
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Mas a realização do Enem, em meio à pandemia do coronavírus e toda a (má) sorte de consequências que enseja, não se trata apenas do agravamento da injustiça social brasileira. Mesmo os alunos com acesso a computadores, internet banda larga e boa estrutura domiciliar também passam por um aprendizado deficiente.
Nova data da prova será decidida em enquete com os candidatos - EBC
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“Sou muito privilegiada por ter a possibilidade de estudar pelo EAD, tenho bom computador, boa internet, um quarto só para mim. A maior parte da população não tem essas coisas”, analisa Laura Queirós, 19 anos, que quer fazer psicologia na UFF. “Mas, mesmo com tudo isso, não me adaptei às aulas online. Não consigo me desligar do que está acontecendo. Choro todos os dias. Não estou estudando nada, praticamente. Só acompanho o curso de redação à noite”, relata Laura.
Laura Queirós, que faz cursinho, diz não conseguir se concentrar nas aulas pela internet - Arquivo pessoal
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“A maior diferença é não ter o contato com os colegas, os professores. Isso ameniza muito o estresse natural das aulas e do estudo. Os professores até tentam, mas é muito difícil suprir isso (com as aulas por vídeo)”, reforça Tamíris, que também é a favor do adiamento do Enem, mesmo que isso represente mais um ano de atraso no sonho de ingressar na faculdade pública que almeja.
Teresinha Nascimento, coordenadora pedagógica do Alpha, aponta que, por mais que as escolas e os professores se desdobrem para superar as limitações do ensino não-presencial, por mais que o conteúdo previsto seja aplicado, é muito difícil verificar o que de fato foi absorvido pelos alunos como conhecimento, uma vez que avaliações e testes são feitos sem a supervisão dos profissionais, e sem controle de quem, na prática, os realiza.
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“Quando tudo isso acabar, vamos precisar fazer uma grande avaliação do que foi realmente assimilado por cada um deles nesse período”, diz Teresinha, que vê a realização do Enem este ano como desperdício de recursos do governo, dos candidatos, e até mesmo das instituições superiores.
“Os estudantes da rede pública sofrerão ainda mais a defasagem, mas os da privada também vão ter desempenho aquém. Se o Enem for feito como se prevê, acredito que muitos não atingirão o resultado mínimo, e muitas vagas nas universidades ficarão ociosas”, argumenta.
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Elda faz eco: “Mesmo na rede particular, esse aprendizado é precário. Mesmo para quem tem estrutura, essa situação forçou uma independência dos alunos, e nem todos estão preparados”, observa.
Elda Moura, professora de história, diz que o aprendizado por EAD tem deficiências e realça desigualdades - Arquivo pessoal
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Depois de uma grande mobilização da comunidade escolar, o Ministério da Educação postergou o Exame Nacional, por um ou dois meses.
“Acho que esse adiamento é insuficiente, porque a gente não sabe quanto tempo essa doença ainda vai durar”, ressalta Hugo. “Essa data (de realização do Enem) deveria ser debatida com entidades estudantis, com gente da área médica, cientistas, para traçar um prazo mais preciso”.
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Com ou sem Enem, existem aqueles que pregam que todo o ano letivo deveria ser invalidado, por todas as razões já mencionadas.
“Tem gente lutando pela suspensão do ano letivo. Mas sou contra paralisarmos tudo”, diz Elda. “Não me incomodaria de fazer tudo de novo, mas não podemos deixar os alunos simplesmente parados. Tem alunos que estão estudando, temos que estar aqui para eles”.
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“Eu acho que vai ter que cancelar o ano letivo”, contrapõe a colega Rafaela. “Tenho turmas de 40 alunos que apenas cinco ou seis frequentam as aulas online. Não existe aproveitamento (do aprendizado). O que estamos fazendo é uma maquiagem”.