Publicado 09/09/2019 13:41
Tribunais, defensorias e procuradorias são, para a maioria dos brasileiros, instituições envoltas em mistério. Somente uma pequena parcela da população sabe para que servem e como funcionam. Por isso, a ideia de estar frente a frente com um juiz é geralmente associada a punição e não à reivindicação de algum direito. Construídas com palavrório hermético, as sentenças soam ao cidadão comum não como decisão técnica baseada em um código legal, mas como a expressão da vontade de semideuses togados. A aura do magistrado todo-poderoso atravessou os séculos e chegou aos nossos dias praticamente intacta.
Esse distanciamento ajuda a explicar o episódio que agitou o noticiário no último fim de semana:: a decisão do desembargador Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio. Ele concedeu liminar permitindo que funcionários da prefeitura recolhessem da Bienal do Livro revistas Marvel em que dois personagens gays se beijam. O pedido absurdo foi feito, como se sabe, pelo prefeito Marcelo Crivella e, felizmente, o estoque de publicações esgotou antes da chegada da trupe municipal.
Mesmo sem efeito concreto, causou espanto a canetada de Tavares. Tanto que o decano do Supremo Tribunal Federal manifestou perplexidade, em mensagem enviada à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo: "Sob o signo do retrocesso – cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do estado–, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático". O presidente do STF, Dias Toffoli, cassou a liminar concedida pelo presidente do TJ do Rio, mas o mal estar permanece.
Está expresso na Constituição Federal que a censura não pode ser praticada no Brasil. O Estatuto da Criança e do Adolescente, evocado pelo prefeito Crivella para mandar recolher as revistas, tem o objetivo de proteger os pequenos de conteúdos de cunho sexual e pornográfico. Um beijo não é ato de pornografia, seja entre heteros ou gays. Essas premissas básicas deveriam ser de conhecimento de qualquer magistrado. Ainda mais quando se trata de um desembargador. E mais ainda sendo o presidente do Tribunal de Justiça. Por isso, a perplexidade do ministro Celso de Mello.
A falta de intimidade do brasileiro com a noção do Direito parece ter sido percebida por parte do Judiciário, que comete barbeiragens sem que haja reação da opinião pública. De uma maneira geral, o cidadão médio espera do juiz o justiçamento, a condenação, a imposição de pena, mesmo quando a lei não avaliza. Embalados por esse sentimento, alguns magistrados brasileiros têm dado à Constituição sua interpretação particular, muitas vezes apartada do sentido real.
Condenar e punir em busca do aplauso das redes sociais, de acordo com suas convicções pessoais e em desacordo com a lei não é uma distorção pequena. É algo trágico para a democracia, um regime que é totalmente baseado no cumprimento dos códigos legais. Que a perplexidade manifestada por Celso de Mello, um ministro reconhecido por sua serenidade e equilíbrio, faça refletir todos os que vestem toga. O recado é simples: apenas façam cumprir as leis.
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