Luarlindo Ernesto - Daniel Castelo Branco / Agência O DIa
Luarlindo ErnestoDaniel Castelo Branco / Agência O DIa
Por Luarlindo Ernesto
Rio - Foi no Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristos de 1990 que o SUS - Sistema Único de Saúde - foi implantado no país. Ruim para uns e, para outros, bom. Deixando opiniões ao lado, sem discutir o mérito da questão, tentarei explicar o que aconteceu um pouquinho antes. O personagem, verídico, é o carteiro aposentado Clodomir, um vizinho de muitos anos, morador na Água Santa que aumentava a renda fazendo bicos como ferreiro ( acho que foi melhor ferreiro do que carteiro). Um verdadeiro artista em obras com ferro. Fui freguês por anos e anos. Nessa época, claro que não havia a informatização no sistema de saúde, Clodomir conseguiu fazer seu tão sonhado e impossível Plano de Saúde. Com a identidade de funcionário dos Correios, não pagava passagem em trem ou ônibus e, aproveitando a "gratuidade", fez cadastro em vários hospitais do município do Rio.

Em Santa Cruz, onde tinha uma namorada e que visitava uma vez por semana, fez matrícula no Hospital Pedro II. Lá ele tratava o coração (e da bela, segundo ele, Cacilda) e intestinos. Ia de trem, embarcando na estação do Engenho de Dentro. Passava no hospital - ainda tinha gente que chamava hospital de nosocômio - encarava uma fila pequena, passava pelos médicos e ainda fazia alguns exames. Depois, munido de uma caixa de bombons, ou de um batom, ou mesmo uma calcinha, ia ao encontro da "outra". Voltava somente quando o céu já estava escuro. Pasmem: ainda trazia medicação! Semana seguinte, ou quinze dias depois, era a vez de ir até o Hospital da Piedade, pertinho de casa. Ônibus na porta de casa e pertinho do hospital. Maravilha. Chegava lá pelas oito horas... Lá, tratava da catarata e da úlcera. Era atendido rapidinho e voltava, com alguns medicamentos, antes do almoço.

Passava na improvisada oficina que mantinha nos fundos da velha casa - alugada - e adiantava o serviço. Portões, portas, grades, bancos e coberturas de varandas eram as encomendas e o passatempo além da garantia de comer carne diariamente. Ainda pagava o aluguel com o dinheiro extra. A grana da aposentadoria era para ajudar a sustentar a família - mulher e dois filhos que não adeririam ao Plano de Saúde dele - e a manter o velho hábito de frequentar o Jóquei Clube, na Gávea. Entre os hospitais de Santa Cruz e da Piedade, Clodomir "frequentava" o Hospital Salgado Filho, no Méier. No ambulatório, era atendido na Clínica Geral e Urologia. Mas, cuidadoso com a saúde, ainda tinha matrículas no Hospital de Bonsucesso, (cuidava do fígado, pâncreas, vesícula e rins), e no do Caju (pulmões), no hospital da Universidade Federal.

Clodomir, ia, assim, vivendo sua vidinha, andando pela cidade e distribuindo cartões de visita onde badalava sua arte em ferro.

Bem antes da invenção do celular, o aposentado não esquecia o pequeno companheiro, o rádio de pilhas. Não usava fones. Carregava o pequeno aparelho no bolso da camisa, pertinho do ouvido esquerdo - o que era o mais apurado dos ouvidos - para ouvir as notícias do dia a dia e as promoções de supermercados. Onde noticiavam precinho em conta, do frango ao cotonete, ou da carne de segunda ao sabonete, Clodomiro estava lá. Não importava o bairro. Bem cedinho começava a peregrinar a procura do preço mais barato. A velhice agitada e sem monotonia fazia parte da agenda. Logo o Plano de Saúde bolado por ele foi desmontado. Informatizaram o SUS. As idas aos mais variados hospitais foram canceladas pelo sistema. O computador derrubou o esquema de saúde e Clodomir foi obrigado a entrar na fila do Sisreg - o sistema de regulação do Ministério da Saúde - e a entrar em tantas outras filas da saúde. Parou de frequentar o Jóquei Clube, parou com o bico de ferreiro, está mais velho e doente. Pior, como se queixou várias vezes aqui no ombro amigo: " roubaram o rádio de pilhas, fiquei viúvo duas vezes: morreu a esposa e a "namorada" fugiu com outro.