Por Luarlindo Ernesto
Enquanto o cólera avançava no Brasil, incluindo aí o Rio de Janeiro, eu desembarcava na Ilha de Cajaíba, Foz do Rio Acaraí, Sul da Bahia, com meu amigo, (ou irmão) de leite, o Lins. Ele, empresário do ramo de hotelaria, foi buscar uma embarcação, saveiro, que havia encomendado dois anos antes, e estava em fase final de acabamento, no estaleiro artesanal ( e clandestino) , um dos três que havia no local. A ilha, na época, início dos anos 90, abrigava umas duas mil e quinhentas almas - todos da mesma família, uns negros, outros branco, cafuzos e mulatos, meio índio, todos com a mesma feição facial - que se instalaram em Camamu, principal lugarejo da região, e migraram para a ilha desde os tempos da libertação dos escravos. Uns viviam da pesca, outros da carpintaria naval, e uns poucos, das "roças" de sobrevivência.

Collor havia recebido a faixa presidencial do José Ribamar, conhecido como Sarney, e Brizola comandava o Rio de Janeiro, iniciando uma encampação de empresas de ônibus. Brizola descobriu e denunciou a corrupção entre empresários do setor e o governo do estado. Tinha certeza de que já tinha visto esse filme... Aí veio o Moreira Franco, que assumiu o governo do estado e "desencampou" tudo.

Foi nessa época que 11 jovens, a maioria da favela de Acari, foram sequestrados em um sítio em Magé e, desaparecidos até hoje, foram dados como mortos. Lembram? Foi criado o grupo "Mães de Acari". Caramba, também teve o assassinato da atriz Daniela Perez, o ex-ator Guilherme de Pádua e a ex-mulher dele, Paula Tomas atraíram a jovem, tinha 22 anos, e a mataram a golpes de faca, ou tesoura, na Barra da Tijuca. Poucos anos depois, aconteceu a Chacina da Candelária, oito jovens mortos. E foi nessa época que foi criada a pior cerveja que bebi na vida: Malte 90. De resto, corrupção, assassinatos, parece os dias de hoje.

Bem, voltando à Bahia: a embarcação do Lins quase pronta ( faltava pintar e regularizar documentação na Marinha) nos anos do cólera. Disposto a ficar longe da doença, enchi meu alforje com comida enlatada e ficamos acolhidos na casa de um pescador - a casa era tipo palafita, com estacas sustentando a tosca construção sobre a água do mar - e a latrina "flutuava" sobre as suaves ondas que rebentavam calmamente abaixo. Ali, porcos e siris dividiam os dejetos na maré baixa. Muito estimulante. Eu me alimentava dos enlatados O pior: a água A salvação era a Malte 90 — a Malte Nojenta! — comercializada em uma "vendinha" no meio do lugarejo. Sem gelo!

Para finalizar essa novela de recordações, pintamos o barco com a tinta - que não rendeu o suficiente para pintar toda a embarcação - e caímos no mar, rumo à Ilha Grande, aqui no Rio de Janeiro. A tripulação? Eu e o Lins. O barco tinha (ainda tem) uns 20 metros, dois mastros e potente motor. Mas, sem documentos, teríamos que driblar a fiscalização da Marinha - havia navio que patrulhava, como sempre, naquela área da Costa.

Como a tinta era branca e o saveiro foi batizado de "Tridente Negro", rumamos para o Sul. Pouco tempo no mar e logo avistamos o navio-patrulha. Aquela voz, alta e forte no megafone nos deixou trêmulos: "Atenção, embarcação, identifique-se!". E o Lins gritou: "aqui é o Alma ( e suprimiu o Negro, do Tridente, mudando o nome do barco, deixando entender que a ALMA em questão só poderia ser branca), rumando para o Rio de Janeiro!" A voz voltou forte: "Viram alguma embarcação chamada 'Tridente Negra' navegando de Cajaíba?". O Lins: "Tem embarcação desse nome no cais da ilha, deve sair amanhã!". E a patrulha se afastou com uma saudação de boa viagem.

O problema é que os donos dos estaleiros tinham birra entre si. Eles mesmos alcaguetavam à Marinha as partidas dos barcos - nenhum deles tinham, documentos - novos, que deixariam os estaleiros. Era uma maneira de atrair a patrulha naval para um barco enquanto outra embarcação passava despercebida. E o Tridente Negro, pintado de branco conseguiu passar. Levamos oito dias para cobrir os quase 2 mil quilômetros de distância, parando em lugarejos ao longo da Costa para dormir, ou encarar bailes de forrós pelo caminho. Foi o primeiro, e único Tridente Negro, branco, que conheci na vida. A passagem por Cabo Frio, perigosa devido às altas ondas, me atirou ao mar por duas vezes. Desembarquei, no Abraão, com febre, com fome e, sem roupas limpas e secas, Consegui uma pneumonia. Vesti trajes femininos emprestados e Lins me levou ao Pronto Socorro de Angra dos Reis. Ai meu Deus: tempo de cólera e de Aids.E de uma época de associação de ideias retrógradas... No hospital, Lins resolveu fazer uma brincadeirinha safada. Eu, vestindo blusa e calça comprida bem femininas, o amigo alertou os médicos: "O nome é Luarlindo, entenderam?". Os médicos pensaram que eu era gay...