Publicado 15/11/2021 09:00
Doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), professor da UFABC e vencedor do prêmio Jabuti 2017, Jessé Souza é um dos convidados da Bienal do Livro do Rio 2021. Ele participa da mesa "Para onde caminham elites e as desigualdades no Brasil pós-Covid rumo às eleições?", que acontece no dia 4, às 11h. Autor de "Como o racismo criou o Brasil?"(Sextante), em entrevista ao jornal O DIA, o sociólogo comenta a relação entre as elites e a manutenção do racismo no país, destacando que "precisamos compensar maldades feitas no passado, mas só se consegue isso mudando a forma de pensar da sociedade".
O DIA: Como o senhor vê a relação entre "A Elite do Atraso" e seu novo livro, "Como o racismo criou o Brasil?"?
Jessé: Meu novo livro é uma continuação da "Elite do Atraso", uma compreensão alternativa, baseada na escravidão e sua continuidade. A esquerda compra esse pacote da política identitária. E minha responsabilidade é falar a verdade, abordar temas desagradáveis, tentar combater mentiras que reproduzem dor e sofrimento.
No seu novo livro, o senhor busca reconstruir o conceito de classe. Como a classe se liga ao racismo?
É uma bobagem falar de classe como estrato econômico. Quando você diz classe/renda, não explica a desigualdade. Por que alguns ganham 500 vezes mais? A classe está relacionada a circunstâncias como a família e a escola. A família de classe média é muito diferente da encontrada nas favelas. As crianças já chegam à escola com estímulos cognitivos e emocionais diferentes. E caímos em uma mentira chamada meritocracia.
O senhor poderia explicar melhor sua crítica à meritocracia?
A meritocracia é a grande mentira do capitalismo; as pessoas acreditam que, por preguiça ou incompetência, são responsáveis pela própria pobreza. Você convence as pessoas da inferioridade delas. Mas ninguém é pobre e humilhado porque escolheu isso.
O senhor poderia explicar o que quer dizer com racismo multidimensional?
O racismo no Brasil não opera explicitamente como raça, e sim por máscaras. É multidimensional, pois compreende raça, classe e gênero, existe como uma forma de a elite manter privilégios educacionais, sem competir com pobres e negros. Há também uma máscara cultural, usada para derrubar governos que trabalharam para incluir negros e pobres. A luta contra a corrupção se insere nesse contexto: uma elite identificada com o europeu caracteriza o povo brasileiro como desonesto, criminalizando a política.
O senhor chama o lugar de fala de "falsamente libertador e ingênuo". Poderia explicar?
O oprimido sente a dor horrível da opressão, mas para compreender é preciso distanciamento para refletir. O lugar de fala é um veneno, uma ideologia para os poderosos não precisarem mudar. A elite continua 99% branca, com poucas exceções por conta do lugar de fala. Você diz a um negro, que não tem nada, que ele sabe mais do que os outros sobre um tema, fazendo-o se apegar a essa ideia. Cria-se uma pequena elite negra para a qual a base pode aspirar, mas 99% nunca poderão ascender, pois não há condições para terem melhores empregos. Vejo o lugar de fala como uma atualização do branqueamento, que premiava mulatos claros.
Faltam pessoas negras na política? O que o senhor acha da regra do "peso dois"?
Num país que odeia mulheres e negros, é ótimo ter qualquer coisa que sirva para compensar esse ódio. Sou a favor de tudo que possa minorar o sofrimento. Precisamos compensar maldades feitas no passado, mas só se consegue isso mudando a forma de pensar da sociedade. Só se muda uma sociedade pela cabeça das pessoas, com debate público aberto e plural.
Para o senhor, qual é a importância do sistema de cotas? De onde vem a visão de que a política não é de inclusão, e sim de discriminação?
Isso é o que o racista diria. As cotas são uma reparação. Existe um projeto das elites de evitar melhora, reproduzindo a escravidão. Você condena uma raça à barbárie e nega a reparação, inclusive na forma de violência policial. É preciso uma redenção universal.
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