O Templo dos Deuses Seculares

Rafael Nogueira

O Dia
Rafael Nogueira Divulgação

Quando Donald Trump anunciou o corte de bilhões destinados a Harvard, o noticiário se dividiu entre a galhofa e a indignação. “Mais uma bravata.” “Uma guerra contra a educação.” “Autoritarismo.” Mas havia algo de diferente naquele gesto. Algo que não cabia nem na pauta dos editoriais, nem no sarcasmo das redes.

Porque o alvo não era apenas uma universidade. Era o símbolo. Harvard, afinal, não é só Harvard. É o Templo de Salomão da elite secular ocidental. Um templo sem Deus, mas com sacerdócio. É dali que saem os administradores do império mental: os intérpretes da verdade sancionada, os engenheiros da consciência coletiva.

E Trump sabe disso. Ele não cortou verba — cortou o palco. Puxou a cortina. Apontou o teatro.
O que se tem visto ali não são sabáticos de Newton, nem invenções de Pasteur, mas sobretudo militância com crachá de pesquisador. Um grupo de iniciados ditando dogmas em nome da “ciência”, mas sem o menor interesse por crítica, refutação, dúvida ou humildade epistemológica. A coisa toda virou uma espécie de seita com planilha, onde o pecado capital é discordar.

Trump não quer reformar Harvard. Ele quer que a gente pare de levar Harvard a sério. Não a Harvard enquanto instituição secular, que formou John Adams, editou clássicos de todos os tempos e lugares, e no seio da qual tantas descobertas surgiram, mas a que sedia uma elite para a qual o conhecimento é só adorno, e o que importa mesmo é o poder. Quer, com sua delicadeza habitual, dizer: “Vá procurar saber em outro lugar, meu filho.” O gesto não é anticiência. É anti-sacralização — daquilo que não é, nem deveria jamais ter sido tratado como sagrado.

O gesto, aliás, vem acompanhado de cifras e justificativas. Além do congelamento de verbas que, somadas, ultrapassam os 2 bilhões de dólares, o governo também suspendeu contratos no valor de 60 milhões e ameaça cortar bilhões destinados à pesquisa em saúde. O argumento oficial é direto: segundo a Casa Branca, Harvard — e outras como Columbia e Princeton — toleram antissemitismo disfarçado de ativismo, censuram opiniões divergentes em nome da inclusão, e usam dinheiro público para financiar doutrinação ideológica. Harvard, por sua vez, levou o caso à Justiça. Alega que o governo está violando a Primeira Emenda, interferindo em sua autonomia acadêmica e retaliando posições institucionais legítimas. A guerra está declarada.

Agora, não vamos fazer como os otimistas entusiasmados, aqueles que acham que o Ocidente pode ser salvo por live ou decreto. Não sabemos se vai dar certo. Nem devemos achar que o outro lado é composto só de canalhas — ou que o nosso tem o monopólio da razão. Isso também é hybris, aquela empáfia grega que faz a tragédia se arrastar pelo palco até o banho de sangue final.

O que podemos, sim, é celebrar a fresta que se abriu. Se Harvard tropeçar no próprio manto, pode ser que novos saberes encontrem espaço. Não um, mas vários. E que possamos, enfim, sair da lógica binária onde ou você concorda ou você é um desses malditos sufixos: fascista, negacionista, populista, machista... Sempre um “ista” a mais na testa, para que a patrulha possa dormir tranquila.
No fim das contas, talvez não estejamos diante do fim de Harvard, nem do começo de uma nova era. Talvez seja só uma pausa para respiro, um intervalo entre dois atos de decadência. Mas é bom, de vez em quando, ver um gigante tropeçar. Nem que seja para a gente lembrar que ele tem joelhos.

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Arte coluna opinião 23 abril 2025 Arte Paulo Márcio