Por daniela.lima

Rio - Não sei bem qual jogador do Flamengo fez uma lambança, qualquer um poderia ter feito, mas o xingamento surgiu do fundo do bar: “Isso é um abestado!”. Não me contive e tive um ataque de riso ao ouvir uma expressão tão íntima, tão próxima do meu universo. Muito comum no Norte e Nordeste do Brasil, ela diz muito sobre o humor ímpar dos habitantes destas regiões. Filho de mãe amazonense que sou, tive o prazer de passar muitas férias em Manaus e de por lá viver dois dos anos mais bacanas da minha vida, rodeado pela floresta e cercado de primos e amigos para a vida toda. Isso sem falar na presença curiosa de minha avó Diva, a matriarca de uma família que, tivesse eu o toque divino de um Garcia Marquez, me forneceria farto material para um outro ‘Cem Anos de Solidão’. Eu tinha meus 15, 16 anos...

João Pimentel%3A Égua%2C sinistro!Divulgação


Das lembranças que eu tenho de Manaus, algumas das melhores, sem dúvida, estão relacionadas ao bom humor, às tiradas curiosas e às expressões típicas dos amazonenses. Por isso, o abestado, pronunciado de forma tão natural, me soou como as madeleines de Proust, doces cujo o cheiro e o gosto remetiam o escritor às lembranças da infância, do passado. Tudo bem, abestado não estimula o meu olfato, nem meu paladar, mas me traz de volta outros lugares e expressões, como a mais curiosa de todas: égua!

Égua, no Norte, é a síntese de tudo, tem uma função similar a que a palavra sinistro ganhou entre a juventude, a partir do final dos anos 90. Por exemplo: dois rapazes estão bebendo uma cerveja na mesa de um botequim quando passa uma gostosona de fechar o quarteirão. Ou então, um acidente horrível acontece bem em frente à birosca. Mais, um marciano estaciona sua nave para filar um cigarro do dono do estabelecimento. Para todas as situações que poderiam acontecer naquele instante, a interjeição advinda do quadrúpede resolveria a questão. Égua exprime surpresa, indignação, susto, felicidade, tudo o que se possa imaginar.

Quando sinistro ganhou lugar de destaque entre os cariocas, presenciei a conversa do irmão menor de um amigo ao telefone. O interlocutor não deveria usar muitas outras palavras, mas a parte da conversa que eu ouvia se limitava a insistente: “É? é? sinistro!”. Eu, então um estudante de jornalismo, pensei: para que eu leio tanto se o português acaba aqui?

Mas égua é diferente, tem sotaque, tem humor, tem a leveza de um abestado. Nunca consegui ouvir esta expressão sem me lembrar de meus primos, meus avós e outras preciosidades. Égua é tão especial que até pai tem. Ninguém quer ser pai de um sinistro, mas tem muito pai d’égua. Pai d’égua é algo fora de série, excepcional. Meu Flamengo já foi pai d’égua, quando teve Zico, Adílio, Andrade. Hoje, com Muralha, Negueba e companhia, ele está mais para sinistro. Meus pais são pai d’égua, assim como uma boa música, um belo dia de sol, o mar, o amor e a amizade.

Sinistro é sinistro, reduz e dá um peso às coisas que não deveria. Fico com o humor repleto de sotaque dos meus quase conterrâneos.

PS: Égua! Escrever esta coluna me deu uma saudade enorme da minha família amazonense, dos banhos de rio, do tambaqui, do tucunaré, dos igarapés e especialmente da minha avó Diva e meu avô Sérgio. Que eles estejam descansando em um lugar pai d’égua.

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