Rio - Não sei bem qual jogador do Flamengo fez uma lambança, qualquer um poderia ter feito, mas o xingamento surgiu do fundo do bar: “Isso é um abestado!”. Não me contive e tive um ataque de riso ao ouvir uma expressão tão íntima, tão próxima do meu universo. Muito comum no Norte e Nordeste do Brasil, ela diz muito sobre o humor ímpar dos habitantes destas regiões. Filho de mãe amazonense que sou, tive o prazer de passar muitas férias em Manaus e de por lá viver dois dos anos mais bacanas da minha vida, rodeado pela floresta e cercado de primos e amigos para a vida toda. Isso sem falar na presença curiosa de minha avó Diva, a matriarca de uma família que, tivesse eu o toque divino de um Garcia Marquez, me forneceria farto material para um outro ‘Cem Anos de Solidão’. Eu tinha meus 15, 16 anos...
Das lembranças que eu tenho de Manaus, algumas das melhores, sem dúvida, estão relacionadas ao bom humor, às tiradas curiosas e às expressões típicas dos amazonenses. Por isso, o abestado, pronunciado de forma tão natural, me soou como as madeleines de Proust, doces cujo o cheiro e o gosto remetiam o escritor às lembranças da infância, do passado. Tudo bem, abestado não estimula o meu olfato, nem meu paladar, mas me traz de volta outros lugares e expressões, como a mais curiosa de todas: égua!
Égua, no Norte, é a síntese de tudo, tem uma função similar a que a palavra sinistro ganhou entre a juventude, a partir do final dos anos 90. Por exemplo: dois rapazes estão bebendo uma cerveja na mesa de um botequim quando passa uma gostosona de fechar o quarteirão. Ou então, um acidente horrível acontece bem em frente à birosca. Mais, um marciano estaciona sua nave para filar um cigarro do dono do estabelecimento. Para todas as situações que poderiam acontecer naquele instante, a interjeição advinda do quadrúpede resolveria a questão. Égua exprime surpresa, indignação, susto, felicidade, tudo o que se possa imaginar.
Quando sinistro ganhou lugar de destaque entre os cariocas, presenciei a conversa do irmão menor de um amigo ao telefone. O interlocutor não deveria usar muitas outras palavras, mas a parte da conversa que eu ouvia se limitava a insistente: “É? é? sinistro!”. Eu, então um estudante de jornalismo, pensei: para que eu leio tanto se o português acaba aqui?
Mas égua é diferente, tem sotaque, tem humor, tem a leveza de um abestado. Nunca consegui ouvir esta expressão sem me lembrar de meus primos, meus avós e outras preciosidades. Égua é tão especial que até pai tem. Ninguém quer ser pai de um sinistro, mas tem muito pai d’égua. Pai d’égua é algo fora de série, excepcional. Meu Flamengo já foi pai d’égua, quando teve Zico, Adílio, Andrade. Hoje, com Muralha, Negueba e companhia, ele está mais para sinistro. Meus pais são pai d’égua, assim como uma boa música, um belo dia de sol, o mar, o amor e a amizade.
Sinistro é sinistro, reduz e dá um peso às coisas que não deveria. Fico com o humor repleto de sotaque dos meus quase conterrâneos.
PS: Égua! Escrever esta coluna me deu uma saudade enorme da minha família amazonense, dos banhos de rio, do tambaqui, do tucunaré, dos igarapés e especialmente da minha avó Diva e meu avô Sérgio. Que eles estejam descansando em um lugar pai d’égua.