Por tabata.uchoa
Fiquei anos com medo do fantasma de Vargas. Não tinha condições emocionais de visitar o Palácio do CateteAgência O Dia

Rio - Nada é mais impactante na vida de uma criança do que o cadáver inaugural. É a imagem do defunto primordial que se transformará quase certamente no primeiro fantasma, aquele que guardaremos pelo resto de nossas vidas.

O meu primeiro cadáver — e meu fantasma definitivo — foi Getúlio Vargas. Não, eu não era nascido quando o velho se matou, em 24 de agosto de 1954. Minha mãe tinha só nove anos.

Acontece que na minha casa havia uma edição da revista ‘O Cruzeiro’ sobre o legado de Vargas, lançada no vigésimo aniversário da morte do presidente. Um dia, saído das mamadeiras, folheei a revista e me deparei com uma foto que ainda hoje é nítida na minha memória. Getúlio, mortinho da silva, tinha um lenço amarrado que sustentava o maxilar, para evitar aquela boca aberta típica dos defuntos frescos.

O problema é que o laço que amarrava o lenço — no alto da cabeça — causava um impressão curiosa, em virtude das pontas jogadas uma para cada lado. Intrigado, perguntei ao meu avô:

— Quem é?

— Getúlio Vargas.

E aí, com a inocência de zagueiro brasileiro enfrentando o ataque alemão na Copa do Mundo, indaguei:

— Por que ele está vestido de coelhinho da Páscoa?

Simplesmente achei que o laço representava as orelhinhas do famoso símbolo pascal e os algodões nas narinas eram pompons que compunham a fantasia do coelhinho.

Meu avô, conterrâneo de Lampião, não tinha entre seus dotes a capacidade de lidar com essas indagações infantis e simplesmente respondeu:

— Ele tá morto. O lenço é pra evitar que o queixo fique caído. Repara só no detalhe dos algodões no nariz. É pra não sair umas melecas que todo defunto solta.

Nunca me recuperei do impacto.

Foi, asseguro aos leitores, o momento em que o menino — de forma brutal — virou homem. Foi ali, tenho certeza. Ninguém passa incólume pela experiência de descobrir que um singelo coelho da Páscoa pode ser um presunto. Até hoje não consigo esquecer a imagem aterrorizante do corpo do presidente — e sou incapaz de ver um lenço ou um simples chumaço de algodão sem considerar que foram criados para preparar defuntos.

Fiquei anos com medo do fantasma de Vargas. Não tinha condições emocionais de visitar o Palácio do Catete, com pavor de encontrar o espectro do presidente vagando pelos corredores. Nesta semana, a do aniversário do suicídio, lembrei-me daquela foto o tempo inteiro. Todo ano é assim nessa época.

Uso, para fechar essas mal traçadas, o mote da velha propaganda de sutiã e afirmo com a convicção de um João Batista bradando no deserto: O primeiro cadáver a gente nunca esquece.

Você pode gostar