
Rio - Certa vez, um amigo argentino — na verdade, um quase carioca, já que Jorgito Sapia mora há mais de trinta anos por estas bandas — me contou que a ditadura militar em seu país de origem foi tão barra pesada que todo argentino ou teve algum parente morto e/ou torturado, ou conhece alguém que teve. Isso nunca mais saiu da minha cabeça, porque, tirando os mortos, torturados e desaparecidos da nossa própria ditadura, podemos fazer tal reflexão sobre a violência nossa de cada dia.
Alguém aí já foi, ou teve algum parente, vítima de violência por parte de bandidos, fardados ou não? Você que lê estas linhas já teve algum amigo agredido ou morto, ou algum amigo do amigo? Certamente. Tenho a sensação de que, a qualquer momento, alguma coisa ruim pode acontecer comigo ou com alguém próximo de mim. Isto é, MAIS alguma coisa.
Já tive amigo perseguido na rua por gangue de filhinhos de papai na Urca, pelo simples fato de ele ser gay. Já tive irmão de amiga assassinado por tentar defender uma senhora de um assalto, em Niterói. Já tive irmão espancado por PM. Muitas histórias.
Há cerca de, sei lá, um ano e meio, após sair do bloco Timoneiros da Viola, passei pela Rua Clara Nunes e atravessei o ensaio de uma ala coreografada. Foi o tempo de eu pegar um trem, chegar em casa, e ver a notícia de que uns bandidos em fuga entraram na contramão, atropelando aquelas pessoas e jogando granadas. Estilhaços de uma delas, fui saber no dia seguinte, cegaram o filho da senhora mais bacana do Museu da Imagem e do Som, onde também trabalho, a copeira amiga dona Maria.
Agora, a violência que arromba a porta de nossas casas, que quebra vidraças e espalha estilhaços de terror no nosso cotidiano chegou ao meu pequeno paraíso, à minha Macondo. No sábado retrasado, uma festa com desfile de moda, música e uma feirinha transcorria normalmente quando a banalidade da estupidez humana subiu a bucólica Cardoso Junior — como tantas bucólicas ruas de nossas vidas — em direção à quadra, centro de convivência onde as crianças jogam futebol, as senhoras, conversa fora, e onde todos, inclusive eu, festejamos a vida em rodas de samba.
Por conta de um copo de cerveja, bebido ou não, por conta de uma discussão idiota com um rapaz da rua conhecido por ter problemas mentais, um PM à paisana, que serve na 1ª Companhia Independente da Polícia Militar, a mesma que faz a segurança do Palácio Guanabara, armado, acompanhado da mulher e de uma criança, acabou se atracando com outro rapaz, Leonardo, na barraquinha de sanduíches montada na rua. O resultado está nos jornais, nas TVs. Leonardo foi baleado pelas costas, quase morreu, e o PM, que parece não ter nome, já que ninguém divulga, dizem que foi preso.
Não estou aqui para julgar o ocorrido, nem poderia, pois, ainda bem, não estava lá. Estou apenas lamentando nossa impotência diante da violência sem fim que parece tomar conta de quase tudo e quase todos e que a cada dia se avizinha. Mata-se por amor, mata-se por religião, mata-se por futebol, mata-se pela incapacidade de se aceitar as diferenças, mata-se por um copo de cerveja, mata-se, mata-se, mata-se.
Fico tentando imaginar quantos dias viveria, no mundo atual, Gandhi com sua pregação pela não violência. Fico pensando quantos hinos como ‘Imagine’ John Lennon teria de compor para mostrar ao mundo que fracassamos completamente na nossa missão divina. De que valeram e valem as vidas e as lutas de Martin Luther King, Madre Teresa, Dalai Lama, Betinho?
O colunista está triste.