Por daniela.lima

Rio - Outro dia disse por aqui que quando morre alguém próximo é como se perdêssemos um pedacinho de vida também. Mas percebi esta semana que a morte de um poeta é uma dentada no mundo. É um vazio incompreensível e irreversível. Lefê Almeida foi um dos cariocas mais fantásticos que conheci. Eu era bem menino quando já ouvia, maravilhado, seus sambas em blocos como o Barbas e o Simpatia é Quase Amor. Descobri que era amigo do meu pai e passei a conviver muito com ele nas rodas do Mandrake, em Botafogo, e do Sobrenatural, em Santa Teresa. E vi que, além de um grande compositor, era uma sumidade em matéria de samba. 

João Pimentel%3A LefêMônica Imbuzeiro / Divulgação


Grande contador de histórias, falava de suas andanças pelo samba e pela cidade. Varamos muitas madrugadas, bebemos todas, rimos, choramos, vivemos. Rara felicidade, viramos parceiros de incontáveis sambas. E com ele aprendi um pouco de sabedoria, porque, mais de duas décadas mais velho que eu, sabia ouvir um moleque de vinte e poucos. Tínhamos uma afinidade, eu, ele, Marceu, Gallotti e outros parceiros que não tem muita explicação. Os sambas sempre fluíam. Um emaranhado de ideias engraçadas, outras poéticas, que como mágica ganhavam forma. 

Lefê era símbolo de um carnaval lúdico, mais amoroso. Certa vez foi morar em Maceió por conta de um trabalho, andava meio desesperançado com o Rio. Não durou até o Carnaval seguinte. Voltou a tempo de ganhar a disputa do Simpatia com um samba clássico: “Não leve a mal coqueiro do Nordeste/ O meu barato é um pedacinho do Sudeste.” Gênio. Lembro-me de ter encontrado ele no Bip Bip. Com sua voz rouca, chegou perto e cantarolou o samba. Nem entrei na disputa. 

A nossa parceria resolveu um problema. Assim como eu e quase todos os compositores, Lefê ficava chateado quando perdia. Sempre brincávamos que ninguém tem filho feio. E fomos fazer versos juntos, ganhamos muitos sambas, perdemos outros. 

Esse querido amigo que eu já conheci de cabelos brancos também era um tremendo produtor. Será sempre lembrado como o cara que deu nova vida à Lapa, no fim dos anos 90, quando teve a ideia brilhante de fazer uma roda em um antiquário na Rua do Lavradio. Para o Coisa da Antiga migraram os órfãos do samba, jovens músicos, amantes da boa música. E ele conduziu brilhantemente aquele ambiente. Depois foi ser diretor artístico do Carioca da Gema. 

Muito mais que organizador de agenda, ele pensava cada dia, brincava com efemérides, com casualidades, criando pequenos espetáculo maravilhosos. Eram roteiros inspirados de um cara que conhecia tudo de música. 

Nos últimos anos andou afastado, talvez meio perdido em um cenário artístico caótico, repleto de novidades de ocasião. Era fiel ao seus artistas, não engolia sapos nem jogava conversa fora.
Em 2013, apareceu com um samba no Simpatia. Eu quase já não frequentava o bloco. Fui lá torcer para ele. Eu, não, todos que careciam de um samba de Lefê. Ganhou. No ano passado fiz um samba com Marceu, sei que ele deve ter ficado enciumado, mas torceu, e muito, para a gente. 

Encontrei ele pela última vez no dia da eleição da Dilma. Disse-me, em tom de lamento, que havia votado nela sem nenhuma vontade. 

Na sexta passada, na casa de uns amigos, recebo a notícia de sua morte. Incrível como essas coisas tiram a gente do prumo. Saber que nunca mais vou sentar para fazer um samba com ele, que nunca mais vamos ouvir sua risada, desfrutar do seu talento, me entristece. Vai mais um pedaço de mim e uma mordida irreparável no planeta.

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