Por karilayn.areias
Rio - Não lembro exatamente quando chegou ali. Provavelmente já estava sentado em algum canto do bar bem antes de eu pintar na rua, fazer amigos, fincar raízes, dançar e cantar sambas no terreiro. Meus primeiros gritos de gol naquele estádio improvisado onde o campo é a tela de um televisor mais ou menos, os ambulantes são garçons amigos e a arquibancada cheia conta com no máximo 15 pessoas, não tinha sua presença silenciosa, observadora. Ou tinha? Impossível saber, estranho não lembrar.
Mas àquele pequeno e fiel grupo de amigos rubro-negros que foi se formando aos poucos, torcedores de tempos, memórias e origens distintas — coisa que ainda tem lugar onde há um botequim — ele se achegou, se aconchegou e passou a fazer parte indissociável. Sabíamos pouco ou quase nada dele. Que já tinha bebido muito, usado e abusado da vida e pagava seu preço acumulando problemas de saúde que seriam sua ruína. Por outro lado, era unânime a admiração de todos pela sua presença simpática, de poucas palavras, pelo seu amor incondicional pelas netas, pela sua preocupação com os filhos, Lelê e Matheus, e com a família. Seu nome? Zé. Apenas Zé, um cidadão humilde, pacato, “um homem por trás dos óculos, como diria Drummond”, como cantou o poeta Vinicius de Moraes.
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Seu apelido era Bozó, possivelmente uma referência ao personagem criado por Chico Anysio que mostrava o crachá de funcionário da Globo, como se isso fosse sinônimo de importância, como se fosse algo que o tornasse superior a qualquer outro mortal. Já vimos que não. Lembro que alguém disse por trás do balcão do Cardosão, o tal boteco, que ele não gostava do apelido. Perguntei a ele um dia e ele jurou que não. Imagina se ele se importaria diante de sua sabedoria com algo tão bobo. Nosso Bozó não precisava de crachá.
Sua presença era fundamental, com seu radinho que por tradição cantava os gols antes de a bola estufar o filó na telinha. Quando a favor, um grito de goooool, rapidamente sucedido por um sorriso amarelo: “Foi mal, não resisti”. Quando contra, um movimento brusco com a perna e um sonoro: “Puta que pariu”. Ah, também repetia o bordão da cerveja quando a garçonete passava: “Vai Verão”. Nos dias de bar cheio, o plano B de irmos para a minha casa sempre contava com ele. Aparecia com uma garrafa de água com gás, não falava quase nada, mas prestava a maior atenção. E ria, ria muito das besteiras que nós torcedores somos capazes de falar nestas horas.
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Domingo, dia 8 passado, ele foi ao bar para ver o Flamengo. Tinha um samba, muita gente. Eu estava num almoço, Marcinho curtindo uma ressaca e Marceu chegou depois. Torcida desmobilizada, ele deu meia-volta, foi para casa, mais tarde descansou. Nessas horas, não penso nas coisas terrenas, em explicações metafísicas, apenas que o silêncio daquele amigo que mal conhecíamos vai ser, agora sim, incômodo. E que ele levou um pedação da gente, alguns segredos e histórias que, por motivos óbvios, não lembraremos jamais.