Rio - Zeca Camargo calcula ter acumulado em seu smartphone cerca de "53 horas" de conversa com Elza Soares, para escrever a biografia 'Elza' (Ed. Leya, 384 págs, R$ 54,90). Boa parte do papo com a cantora seguiu sem pauta, no fluxo da memória dela. Com a naturalidade, o apresentador do 'É De Casa' deparou com fatos nunca revelados anteriormente, como os problemas que Elza teve com drogas nos anos 1980, logo após a morte de seu filho Garrinchinha (o único de sua união com o jogador Mané Garrincha).
"Eu tive que me segurar às vezes, fiquei muito chocado com alguns relatos. Algumas coisas, como o uso de drogas, ela expôs pela primeira vez", conta Zeca, que foi fundo nos altos e baixos da vida da cantora, focando na sua capacidade de sobrevivência: à fome, ao racismo, ao machismo e aos humores do show business nativo.
Vulnerável
O decorrer do trabalho não foi moleza: Elza se arrependeu de ter dito certas coisas nas entrevistas para Zeca. O escritor defendeu a entrada de temas delicados no livro. Entre eles, o final tumultuado dos mais recentes relacionamentos amorosos da cantora. O biógrafo debateu com a cantora e propôs soluções.
"Ela chegou a falar comigo: 'Não quero que isso entre na história'. Não queria se mostrar como uma mulher vulnerável, que pode se apaixonar, tendo mais de 70 anos de idade. Minha atitude ali foi a mais profissional possível, e não podia demonstrar que estava impressionado ou chocado. Escrevi as histórias e disse a ela que a gente iria construir uma narrativa de forma que ela saísse vitoriosa dos episódios", relata o escritor, que deixou claro no livro o pioneirismo da biografada.
"A gente usa termos como 'empoderamento', 'resiliência', e a Elza já era assim antes desses termos. Ela fazia isso por instinto. Ela foi aprendendo o que era racismo, quando foi percebendo que não era tratada da mesma maneira que os outros artistas", conta.
Elza, por sua vez, diz que as dificuldades foram desaparecendo no decorrer das conversas.
"Eu tenho uma facilidade de me materializar, sabe? Me vejo nas histórias, me vejo como quando era criança. Passei por momentos muito difíceis e quando a gente tem que falar, fala", diz a cantora, lembrando que os períodos de baixa, na carreira e na vida, acabaram servindo para seu fortalecimento. "Em alguns momentos, eu hibernava. Às vezes, é bom estar invisível, porque você leva muita pedrada. Quando você está invisível, a pedra passa distante", filosofa.
Sobrevoa
Zeca abre o livro fazendo uma brincadeira com a letra "z" e com o ziguezaguear da história da cantora. Vinda da pobreza extrema, Elza casou-se aos 13 anos e chegou a perder um filho para a desnutrição, antes da fama. Teve sucesso avassalador no começo de carreira, sofreu ameaças e perseguição após casar-se com Mané Garrincha (sua casa na Ilha do Governador chegou a passar por ataques e depredações), sustentou o jogador e os vários filhos de seu primeiro casamento. E voltou a passar dificuldades, até sua redescoberta nos anos 1980, por intermédio de Caetano Veloso, Cazuza, Lobão e até Branco Mello, dos Titãs, que quase lhe produziu um disco.
"Era uma existência que não era para dar certo. A vida dela é como um videogame. Sempre tem uma fase nova, com novos desafios", alegra-se o escritor, que descreveu certas cenas "sobrevoando" a história da cantora, com riqueza de imagens e detalhes. Recorreu a isso para ilustrar passagens e dar nova leitura a casos eternamente recontados, como a ida dela ao programa radiofônico de Ary Barroso, marco inicial de sua carreira.
"No capítulo em que falo de shows dela na Itália, começo falando das músicas que estava nas paradas na época. Começo num ponto e depois volto. A mesma coisa quando falo da ocasião em que ela pediu ajuda a Caetano Veloso. Falo da ida dela a um hotel em São Paulo, do saguão do hotel, etc", diz Zeca.
Sem armadilha
O autor preferiu não ler a outra biografia de Elza Soares, 'Cantando Para Não Enlouquecer' (1997), de José Louzeiro. Só chegou a este livro após ter colocado o ponto final em 'Elza'. Na hora de falar de Garrincha, por sua vez, Zeca recorreu a um livro raro escrito pela cantora, 'Minha Vida Com Mané' (1969). O principal veio mesmo da memória de Elza, que lhe relatou casos pouco citados, como a perseguição que sofreram da ditadura militar nos anos 1960. A casa do casal Elza e Garrincha chegou a receber uma visita do temido Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em 1964.
"A Elza tinha me dito que o livro do José Louzeiro era mais documental, e essa biografia é mais intimista. Eu não queria cair na armadilha do 'tá faltando isso, tá faltando aquilo'", afirma Zeca. Ele concluiu que o melhor seria aproveitar o relato de Elza como uma "história oral". "Não tive a intenção de fazer uma coisa definitiva. A Elza ainda está viva, e tem projetos para 2020, 2021", conta Zeca, que pensa em fazer outras biografias.
"Adoraria escrever a do Ney Matogrosso, mas fui sabotado por ele próprio, já que ele fez um livro de memórias", diz, brincando. "Também adoraria fazer a da Marina Lima".
Fome
O escritor reparou num aspecto curioso da psicologia de Elza. E que provavelmente tem suas raízes nos maus bocados que passou durante a infância, no bairro de Água Santa.
"Ela tem uma preocupação grande com comida. Vira e mexe ela fala: 'Pelo menos tem comida na minha mesa e na dos meus filhos'. Na adolescência, a preocupação dela era pôr comida em casa. O primeiro filho dela, Raimundo, morreu de um misto de doença e desnutrição, e não tem nem atestado de óbito", conta, dizendo que viu o padrão se repetir em vários momentos. "Quando ganha o primeiro dinheiro como cantora, ela leva comida para os filhos. No teste na Odeon, a primeira coisa que ela repara é a mesa de café da manhã".
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