Por SELECT ART

“Basta abrir o jornal para constatar que, desde a véspera, uma nova queda foi registrada; que não apenas a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo moral, sofreu transformações que jamais pensamos serem possíveis.”

O trecho, que parece se referir à montanha-russa dos acontecimentos noticiados diariamente em jornais e sites informativos brasileiros, corresponde ao ensaio O Narrador (1936), de Walter Benjamin, sobre a queda do valor da troca de experiências no contexto de uma Europa devastada pela Primeira Guerra Mundial. Aqui e agora, as atrocidades nossas de cada dia, que incluem os crimes ambientais, a redução dos direitos trabalhistas, a facilitação do acesso às armas, a recusa da agenda climática, a diminuição das terras indígenas, a restrição à entrada de imigrantes e a ideologização do ensino, configuram, tal qual os desastres da Guerra percebidos por Benjamin, retrocessos que jamais pensamos serem possíveis.

O que fazer quando reinam tempos sombrios? À pergunta que atravessa os momentos mais críticos da história os artistas brasileiros respondem com obras-manifestos: em vez de submeter-se, resistir. Em vez de apagar-se, iluminar a noite com lampejos de pensamento.

Lucioles (2008), fotografia de Renata Siqueira Bueno, ilustra as versões em francês, português e inglês do livro Sobrevivência dos Vagalumes, de Didi-Huberman (Foto: Cortesia da Artista)

 

Sobrevivência dos vagalumes
É quarta-feira, meio-dia em ponto, quando a artista Maria Montero se posiciona diante de um pedestal sob o sol a pino na Praça da Sé, em São Paulo. O microfone é ligado, ela abre o livro Sobrevivência dos Vagalumes (2009) e lê para os passantes o último capítulo do ensaio de Georges Didi-Huberman, que discorre sobre a sobrevivência da ação política na forma de “luminescências erráticas, dançantes, intocáveis e resistentes ao mundo do terror”. 

Se Benjamin reflete sobre a extinção da arte de narrar histórias na Europa entreguerras, Didi-Huberman vasculha os motivos que levaram o cineasta Pier Paolo Pasolini a relacionar o desaparecimento dos vagalumes, devido à poluição dos rios, com a permanência do fascismo na Itália. Nas palavras de Pasolini (O Artigo dos Vagalumes, 1975), o clarão errático, a chama de desejo, de arte e de poesia, encarnadas nesses seres luminescentes teriam sido “aniquilados pela luz feroz dos projetores do fascismo triunfante”. Seu desaparecimento teria ainda passado despercebido pelos “intelectuais mais avançados e os mais críticos”, em descuido similar ao que vimos acontecer com o avanço conservador das últimas eleições presidenciais no Brasil e nos EUA. 

Voltamos, então, à voz amplificada de Maria Montero que irradia na Praça. Antes de nos perguntarmos se sua presença se impõe com autoridade sobre os passantes – como ocorre com a ofuscante claridade gerada pelos projetores de showmícios e oratórias religiosas –, ou se o aparato tecnológico de sua performance documentada em vídeo possa ser confundido com olho pan-óptico das câmeras de vigilância do reino messiânico neofascista denunciado por Pasolini, devemos chegar até o final da leitura da artista.

Ereta e vermelha como um farol ao meio-dia, ela vê agitarem-se ao seu redor os moribundos, imigrantes, indigentes, loucos, drogados e poetas. Uma segunda câmera – na mão de um colaborador – documenta os espectadores. A edição final do trabalho Não Existe Ser Sem Fissura (2016), projetado meses depois na Sé Galeria, a poucos metros da Praça, mostra que a voz da artista predomina, mas não apaga as outras ao seu redor. O público da performance aparece em seus atos performáticos individuais: o barbeiro ambulante que agita as tesouras; a transexual sorridente que distribui panfletos; o andarilho que dança break.

Desligada a câmera ao ponto final da performance, Maria recebe um pedido que vem do público: “Eu também sou poeta. Você pode ler os meus, agora?” Embora essa segunda leitura, imprevista, não tenha sido incluída na edição final do trabalho, ela confirma o que leu no livro – “o grande narrador está sempre enraizado no povo”. É, portanto, com a leitura desse caderno de poemas que Maria Montero se afirma como narrador ou como um vagalume sobrevivente.

Manifesto afetivo
Vagalumes iluminam-se para chamar, seduzir e copular. O sucesso no acasalamento está diretamente relacionado à sincronização dos padrões de piscar. O amor e os afetos são qualidades intrínsecas dessa semiótica luminescente, da qual compactuam os artistas – estejam eles em performances em praças públicas ou não.

Não (Ikrek Edições, 2014), livro de artista de Fabio Morais, evoca a poesia dos folhetos e das redes sociais. A obra aborda, na capa e nas folhas de rosto, a história do controle da informação e da censura da expressão no Brasil, durante Colônia e regime militar. Uma oportuna reedição do livro pediria a revisão do texto, incorporando a narrativa dos atuais ataques que pensávamos jamais serem possíveis a professores, artistas, intelectuais e ao livre-arbítrio da sociedade.

Mas o miolo do livro desenvolve uma aventura cinemática – uma espécie de cine-panfleto – entre duas pessoas que se buscam em meio à multidão. Sobre fotografias de manifestações de rua que aconteceram, em 2013, em todo o Brasil, o artista aplica textos cifrados de uma conversa supostamente digitada em aplicativo de telefone celular. Em uma operação de desconstrução da lógica de códice do livro, os textos “postados” pelos dois interlocutores avançam um em direção ao outro e se encontram na dupla central da publicação na palavra Não, título do livro.

Qualquer relação entre esses textos codificados com a linguagem pisca-pisca dos vagalumes não é coincidência. À enzima luciferase, ativada no impulso afetivo dos insetos para se comunicar e se agrupar, equipara-se a força do levante das multidões, em busca de tornar visíveis seus desejos.

Correspondem-se entre si, portanto, os corpos sublevados nas manifestações populares e as constelações de astros fugazes, fotografados por Renata Siqueira Bueno em Lucioles (2008), na luz noturna da Serra da Canastra, em Minas Gerais.

Se os lucioles (vagalumes, em francês) gravitam em algum lugar entre o levantar e o abandonar-se, entre o peso e a graça, os corpos da multidão, também fotografados por Renata Bueno na série Ascensão (2014), são captados na experiência arrebatadora e quase impossível de cair em direção ao alto.

Eros político
É preciso cerca de 5 mil vagalumes para produzir a luz da chama de uma vela. Mas não há uma escala única para os levantes: eles vão do mais minúsculo gesto de recuo ao mais gigantesco gesto de protesto, previne Didi-Huberman. Dessa matemática nascem as experiências coletivas que caem em direção ao alto, que irrompem da melancolia ao levante.

Quando o resultado das Eleições 2018 no Brasil se tornou público, uma imagem alastrou-se pelas redes sociais: ninguém solta a mão de ninguém. Alguns dias depois, o Solar dos Abacaxis abriu, no Rio de Janeiro, a exposição Manjar: Amar em Liberdade, com trabalhos de 11 artistas inspirados pelo convite a reagir à realidade do novo cenário político. “Essa mostra vai ser o anúncio de como vamos viver-lutar nos próximos anos para expandir a revolução micropolítica”, escreveu o curador Bernardo Mosquera.

O artista Marcos Chaves participou com a elaboração de um emblema poético da frase que dá título à exposição. O trabalho Amaremliberdade (2017) resgata a pesquisa com as frases-poemas Amarécomplexo/ Amarésimples, elaborada para a exposição Travessias (Galpão Bela Maré, Complexo da Maré, RJ, 2011). Ao ganhar o espaço público na forma de hashtags, adesivos, camisetas ou títulos de exposição, as frases-poemas alcançam altas ressonâncias.

O emblema poético de Marcos Chaves, a fotografia de Renata Bueno, o livro-performance de Fabio Morais, a ação de Maria Montero e a mobilização do Solar dos Abacaxis são imagens-vagalumes. Corpos luminosos passageiros na noite que integram uma comunidade de lampejos emitidos e de pensamentos a transmitir. “Dizer sim na noite atravessada por lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca”, resume Didi-Huberman.

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