Por SELECT ART

Desde 2018, Jerry Gogosian, uma conta do Instagram, posta memes que muito além de zombar do mundo da arte, põem em alerta os códigos sociais, convenções e dinâmicas de poder entre artistas, galerias, colecionadores, instituições e os milhares de trabalhadores anônimos por trás do glamour desse sistema.

Com mais de 19 mil seguidores, o criador desta fonte de acidez e humor é, ao que tudo indica, um galerista que transita entre a costa leste e oeste norte-americana cuja identidade é mantida anônima – o gênero da figura também é ambíguo, às vezes criticando o sexismo do meio de arte, às vezes reiterando atitudes machistas com ironia.

Quando alguém em um debate me pergunta se “é um desafio ser uma mulher no mundo da arte?” Como se fosse a pergunta mais inovadora já feita. Meme de Jerry Gogosian (Foto: Reprodução)

Jerrry Gogosian é uma deturpação um tanto humorada do nome de um dos mais importantes galeristas da cena contemporânea, Larry Gagosian, que conta com um time de artistas como Richard Prince, Chris Burden, Jeff Koons ou  Jonas Wood – um dos principais alvos de Gogosian, por conta de sua ascensão mercadológica e institucional nos últimos anos. Em entrevista para o portal Autre, Gogosian diz que um dos motivos para ironizar o poderoso comerciante é a forma como sua influência no mercado e nas instituições acabou por determinar a narrativa oficial sobre arte contemporânea, enquanto lhe interessam espaços menos hierárquicos e monopolizados.

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A pessoa por trás do personagem também conta em entrevista para a Sleek Magazine que estudou arte, e que já passou por todas as posições subordinadas – de assistente, gerente, a curador – tanto em espaços geridos por artistas quanto em galerias de peso, antes de se tornar galerista. Diz também que começou a conta no Instagram como medida terapêutica, para rir dos hábitos do mundo da arte e da situação em que via as pessoas desse meio, como colapsos nervosos, uso de drogas, entre outros problemas decorrentes das dinâmicas sociais e de trabalho. O objetivo não é fazer arte, mas produzir conteúdos que se dirijam especificamente para essa “tribo”.

Eu na sua abertura, espionando e discordando de tudo que você diz (na minha cabeça). Meme de Jerry Gogosian. (Foto: Reprodução)

As situações abordadas são narradas quase como uma crônica, vista pelo ponto de vista de alguém que está muito envolvido com o assunto. Esses memes apontam vícios e clichês na formação do artista, inserção no mercado, relações sociais ou com a imprensa. Alguns posts são dedicados a perfis genéricos de colecionadores, artistas e curadores que encontramos nesse meio, enquanto outros são sobre as viagens determinadas pelo calendário de feiras e bienais. Os artigos de consumo – se vestir de preto, usar óculos em lugares fechados, ou desfilar com as bolsas de galerias, feiras e instituições – também são alvo de suas sátiras. Enfim, os comportamentos dos sujeitos envolvidos com o mundo da arte são descritos com auto ironia, mas deixam ver um mal estar de fundo.  

A denúncia das convenções sociais do mundo da arte não é um novidade. Já no século 19, uma série de chargistas zombavam das afetações de artistas, do burburinho do incipiente público de massa ou do gosto burguês que então surgia. No contexto atual, o britânico David Shrigley produz desenhos nos quais coloca em xeque sua própria atividade como artista e os clichês em torno da profissão. Entre os latino americanos, podemos mencionar o mexicano Pablo Helguera, que segue a linguagem econômica das charges para comentar as ambiguidades em torno de eventos e situações como as bienais, residências, jantares beneficentes e aberturas de exposições. No Brasil, o carioca Alvaro Seixas (confira o portfólio na edição #34 da seLecT) produz desenhos satíricos, muitas vezes endereçados a acontecimentos e sujeitos específicos do sistema, gerando polêmicas em torno de sua posição contraditória dentro dessa situação. Já Aleta Valente (portfólio da edição #38 da seLecT) usa o Facebook e o Instagram para levantar problemas sobre desigualdade de gênero e classe no campo da arte, apontando com humor tragicômico para as consequências econômicas e psíquicas de participar desse campo. Em 2006, Yuri Firmeza criou um alarde na mídia ao anunciar a vinda do artista Souzousareta Geijutsuka, que quer dizer artista inventado, para o Brasil. O objetivo era questionar todo o sistema da arte, em especial as formas de legitimação através das instituições e da imprensa. Outras iniciativas que também já surgiram por aqui são o Pobra_Ok, e a página Meme É Mais Legal Do que Arte, que, no entanto, são intermitentes. 

Um dos assuntos mais recorrentes de Gogosian é como vida e trabalho não estão separados na rotina de quem está ligado à arte. Além do tempo de trabalho direto, da produção de exposições, textos ou obras, o tempo livre é usado para investir em mais conhecimento e repertório, o estilo de vida se torna capital social e as relações sociais se tornam parte de uma rede de contatos – o networking.   

Ainda que o bom humor e a autocrítica de Gogosian demonstrem diversão e prazer com o meio, não há como negar o mal estar compartilhado nas denúncias que faz de abusos em relações trabalhistas, má remuneração ou no modo como o competitivo sistema da arte se organiza. As consequências psicológicas desse quadro também são assunto de uma série de outros memes, assim como a desigualdade entre classes sociais ou o abuso de poder.

Fica claro que o que está em jogo não é a arte em si, mas os sistemas e agentes envolvidos, assim como as relações sociais extremamente codificadas e hierárquicas desse meio. Problema que deve ser encontrado também em outros campos profissionais, com suas especificidades. No campo da arte, no entanto, é (ou deveria ser) possível criticar essas estruturas em uma esfera pública.

Entre uma bateria de clichês, é fácil se identificar com uma situação ou outra que qualquer pessoa que trabalhe com arte já passou – seja na posição de oprimido ou de opressor. Em tempos de precarização do trabalho, a desregulação de uma economia neoliberal se agudiza no campo da arte. Iniciativas como a de Gogosian fazem pensar sobre as condições objetivas e subjetivas a que estão submetidos os trabalhadores nos bastidores de feiras, projetos e exposições.

Eu semana sim, semana não, quando decido que sou uma verdadeira pintora novamente… por três horas… Meme de Jerry Gogosian (Foto: Reprodução)

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